Ano passado eu morri

Quando eu era pequeno, morava com minha mãe, irmã e irmão no porão da casa do meu avô – um pequeno quarto com dois beliches, uma pequena sala, cozinha e banheiro. Ainda criança (por volta da quarta série), comecei a trabalhar na fábrica de meia do meu tio – uma pequena estrutura improvisada de telhas de amianto, madeira e metal, erguida à beira do barranco do quintal da casa. A tarefa inicial era simples: pegar um grande saco de buxinhas de cabelo e virar para o “lado certo”. Os sacos eram enormes, certamente haviam milhares de buxinhas para virar. Eu passava horas as virando, e me lembro bem, cada saco virado valia exatos R$0,25. Eu nunca tive uma real noção da nossa condição até me tornar adulto.

No período do ensino médio, minha mãe ainda se sacrificava em tempo integral pra criar os três filhos com alguma dignidade e oferecer a eles alimento, estudo e um futuro diferente do seu presente extenuante. Eu, dividia minha rotina entre o trabalho na fábrica de meia (agora com outras demandas e responsabilidades), a escola e os afazeres domésticos – como fazer o almoço, cuidar da casa, etc. Meus irmãos também compartilhavam dessa rotina de trabalho e estudo. Nesse período, eu trabalhava de manhã na fábrica, subia correndo para tomar banho e esquentar o almoço, ia para a aula e, no fim da tarde, voltava para a fábrica, onde mantinha a produção funcionando até 22:00 ~ 00:00 . No dia seguinte, de manhã bem cedo, começava tudo de novo. Eu nunca me senti triste, desamparado ou indignado com aquela situação, por pior que as dificuldades da vida começassem a transparecer aos meus olhos.

Quando entrei pra faculdade, descobri um universo de possibilidades. Andei quilômetros a pé enquanto trabalhava na fábrica de meia pela manhã (ou à tarde, dependia do horário das aulas), ia para faculdade, ia para bolsa de Conservação e Restauro no Museu de Arte Murilo Mendes e, à noite, trabalhava em um conhecido call center da cidade até 01:00 da manhã, saindo correndo à tempo de não perder o último ônibus para casa. Eu nunca tive a capacidade de imaginar uma realidade diferente daquela.

Após me formar, fui contratado pelo museu onde estagiava. Fundei a Bodoque e, com o tempo tive a oportunidade de conhecer um mundo onde eu não era apenas coadjuvante da minha própria vida, mas podia vislumbrar conquistas e realizações que iam muito além do que jamais fui capaz de imaginar. Foram 11 anos atuando na curadoria do MAMM, como educador no Memorial da República e como coordenador na Bodoque. Fundei a Trama, o Museu de Artes e Ofícios de Juiz de Fora, o Laboratório de Experimentação em Artes Visuais e Design (ARTE Lab), o Fundo Cultural Bodoque, uma editora artesanal, uma Escola Livre, dei palestras, aulas, orientei inúmeros bolsistas, escrevi quatro livros (os quais ainda não publiquei) e me dediquei à minha produção artística.

Ano passado, eu morri. Me vi preso entre escombros represados ao meu redor, que nunca tive sensibilidade pra enxergar. A Bodoque encolheu. O MAOB suspendeu suas atividades. A Trama parou e eu me escondi de mim.

Voltar a publicar a Trama depois desse longo hiato é uma conquista que resulta de um esforço coletivo de pessoas que acreditam na arte e na cultura como ferramentas de emancipação intelectual, mobilidade social e, mais do que tudo, formação humana. Cada contribuição presente nessa edição diz muito mais do que suas palavras e imagens buscam expressar. Elas contam histórias de pessoas que não desistiram, que não se resignaram e que separam uma parte do seu tempo para celebrar a grandeza da cultura e sua capacidade de resistir à crueza da vida. Cada contribuição presente nessa edição estabelece um marco que destaca a presença e a batalha individual de colegas que lutam para afirmar a própria identidade, para superar barreiras de preconceito, para transformar a própria realidade e, acima de tudo, para recolher parte dos escombros espalhados ao seu redor.

Cada contribuição conta uma história diferente, que vai muito além do que está escrito. A minha vem te mostrar um pouco da vista da janela improvisada de uma pequena fábrica de meias.


Frederico Lopes é artista, curador e educador, graduado em artes pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em gestão cultural pela FAGOC. Atuou no setor de curadoria e expografia do Museu de Arte Murilo Mendes de 2013 a 2017. Integrou a equipe de implementação do Memorial da República Presidente Itamar Franco, onde também trabalhou na curadoria e na coordenação da divisão de educação até 2021. É fundador da Instituição Cultural Bodoque Artes e ofícios (2012), da Revista Trama (2019), do Museu de Artes e Ofícios de Juiz de Fora (2020) e do Laboratório de Criação em Artes Visuais e Design (ARTELAB – 2020). É membro do Conselho Curador do Memorial da República Presidente Itamar Franco e suplente da vice-presidência do Conselho Municipal de cultura.


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