Onde nascem os fortes: o set de filmagens no cariri paraibano

Belezas naturais, boa iluminação e grandes personagens da pequena grande Roliúde Nordestina.

A primeira imagem depois uma curva é o letreiro que se destaca meio a vegetação da região do cariri paraibano. Oitenta e quatro metros de tamanho, não desmerecendo a placa da original Hollywood e causando euforia em quem chega para conhecer e tirar suas fotos no grande set de filmagens do cinema brasileiro. Além da onipotente placa que chama a atenção de todos na entrada da cidade, placas ocupam as laterais da via de entrada de Cabaceiras, grandes postêr’s com imagens da última produção global – Onde nascem os fortes – que o correu na região; fotos do elenco e cenas da minissérie que ainda passa nat v, mas que já encerrou seu período de gravações ali há alguns meses.

Chegamos em um dia atípico na cidade, apesar do título e grande repercussão, a Roliúde Nordestina não é tão badalada turisticamente, pelo menos não como naquele sábado. Nós, uma equipe de seis pessoas, além do motorista da van, mais dois carros cheios de curiosos, e no decorrer do dia, dois ônibus escolares chegaram para conhecer os cenários d’O Auto da Compadecida – a primeira obra cinematográfica gravada em 1998, de Guel Arraes.

Logo na chegada paramos no arraial, em frente ao museu da cidade que está temporariamente fechado para obras. Ali percebi os olhares curiosos dos moradores. Era 9 horas da manhã de um sábado, numa cidade pequena de interior, o movimento na via principal da cidade é normal. Os olhares denunciava ainda a curiosidade dos moradores em saber quem tá chegando, acredito que não por ser distante da realidade de movimento local, mas por esperarem a toda hora a chegada de alguma produtora ou equipe interessada em gravar e explorar os cenários de Cabaceiras.

Toda essa chegada de pessoas na cidade faz com que tudo se normalize e os estranhos, diferentes, os predadores acabam se tornando mais um. Acredito que para muitos pesquisadores do ramo da antropologia, aqueles com pensamentos mais enraizados, conservadores, não veriam essa atitude como positivo, afinal, a cidade acaba perdendo sua essência inocente e leve de interior. Mas o fato da espera por algo novo, acredito eu, mantém todo esse imaginário que criamos sobre pequenas cidades afastadas dos grandes centros urbanos.

Encontrei Mariana Castro alguns dez minutos depois de chegar. Diretora do departamento de turismo e comunicação social da prefeitura foi o meu primeiro contato para chegar até ali. A Mariana é Jornalista, nasceu e ainda vive no distrito de Ribeira de Cabaceiras. Da entrada do museu já fomos andando até a entrada da cidade, onde se encontra uma estátua do bode rei. Nesse caminho, que não durou 10 minutos, já fui perguntando à ela sobre a cidade, o desenvolvimento, como ela chegou ali, perguntas básicas que acredito que todo jornalista faz numa chegada, ou pelo menos deveria.

O meu ponto inicial na prévia para a construção da matéria era falar de Cabaceiras e seu grande turismo cinematográfico. Na pesquisa, como é normal, muitas outras ideias e vertentes sobre a cidade foram surgindo, muito já se tinha falado e muito ainda se tinha para falar sobre a Roliúde Nordestina. E tratar somente sobre o viés do cinema seria um erro, ou mesmo mais do mesmo, porém, os entrelaces e metáforas criadas naquele ambiente permitem ainda várias outras narrativas.

O “que Hollywood, local de glamour, fama e dinheiro, estava fazendo naquele território árido, chamado de nordestino, e retratado por ícones de um tempo de civilização mais atrasado aos olhos do senso comum?” A pergunta, que é trecho de uma pesquisa científica de Dina Ferreira, me aguçou e serviu de ponto de partida para entender a pacata Cabaceiras de 5 mil habitantes que é comparada com a Los Angeles de mais de 3 milhões de habitantes e monetariamente mais rica e “desenvolvida”.

Ferreira faz uma análise linguística da metáfora que é o nome Roliúde Nordestina, e é a partir da língua que ela acha suas respostas e faz suas comparações, o que não deixa socialmente de ter suas influências. Porém, eu estive ali e tentei descobrir o que tem esse set de filmagens que o torna tão único e singular.

Voltando a minha conversa com a Mariana, ela contou muito sobre o local, não só pelo cargo que ocupa, mas por ser “filha da terra”. Em uma parte de sua fala, que deixa claro seu grau de parentesco com o prefeito da cidade, conta e demonstra o seu carinho pelo local. “Quando meu primo assumiu o cargo, todos disseram: ‘No turismo coloca a Mariana.’” É visível o conhecimento que parte da Mariana, ao falar da cidade, seus feitos, e valor de fazer mostrar a pequena Roliúde Nordestina, que sofre pela seca do sertão.

“Eu sempre digo, eu posso ir pra qualquer lugar, mas eu nunca vou deixar de ser cabaceirense.”disse Mariana Castro.

A participação da cidade nas produções que ali acontecem é, principalmente, ou quase somente, na prestação de serviços. As produtoras, geralmente, procuram a prefeitura que tenta organizar e oferecer um esquema para recebê-los. Isso está em parte dentro do Projeto Roliúde Nordestina, idealizado por Wills Leal. Tudo isso gera receita, emprega os

moradores locais, e faz crescer economicamente a cidade. Só no mês de Abril, período em que a cidade recebeu pela segunda vez a equipe de gravação de “Onde Nascem os Fortes”, minissérie Globo, a receita do município teve um acréscimo de 1 milhão de reais, em média, comparado aos demais meses do ano, o que comprova que existe uma movimentação e algum benefício financeiro para o local.

“Belezas naturais nós vamos encontrar em várioslugares,masaemoção,aenergia que a gente encontra aqui, não é em todo lugar.” disse Mariana sobre os diferenciais e um dos motivos pela também procura por Cabaceiras. Ela que acompanhou de perto as gravações dessa última minissérie gravada, relata as repetidas vezes que escutou os elogios referentes ao set, à locação natural, além da vivência com todos aqueles envolvidos.

Quando fomos comentar sobre O Auto da Compadecida, a sensação sentida por Mariana, não a diretora, mas alguém que é do Sertão, ela diz: “Ariano Suassuna, ele é eterno… ele conseguiu pegar nossa cultura, brincar com nossa cultura, e não machucou ninguém, não feriu ninguém.” E sinto uma realidade nessa fala, andando por Cabaceiras, no tour, no passar pela cidade e conversas alheias percebemos as características nas engraçadas e fortes falas de Chicó e João Grilo na apresentação da guia Sandrely Soares que nos surpreendia com falas trechos do filme tornando uma visita mais engraçada e nos fazendo estar imerso nas ideias de Suassuna. E esses diálogos continuavam, mesmo fora de cena, não estando apresentando algo, quando a guia passava e encontrava algum conhecido, ou era interrompida no percurso por algum morador da cidade – característica comum e que acredito enriquecer a visita, nos fazendo entender que eles estão à vontade ao apresentar sua casa – as entonações e falas regionais permaneciam.

Cabaceiras é um lugar de muitos personagens, afora protagonistas da tela, os figurantes, moradores e protagonistas da realidade, são parte desse set e contam também sobre a cidade e o cotidiano. Automaticamente, com a crescente ‘roliudiana’, todos se tornaram estrelas e personalidades. Alguns já profissionais de tantas participações, outros ainda vivenciando uma experiência diferente de ganhar dinheiro.

Uma parte aqui deveria ser dedicada só para falar o perfil e participação de cada um, como seu Zé de Pineco (ou Seu Alfeu), que possui várias participações nas produções. Dona Edite que teve sua “estreia” n’O Auto da Compadecida, ou a Darlene, que agora teve sua segunda passagem como figurante, e uma primeira em “Aspirinas e Urubus”, 2006, quando saiu para comprar aspirinas, mas não saiu nas telas – risonhamente me contou. Ou mesmo a Maria das Graças e o companheiro Nilton, que estavam presentes com a família

completa para falar de suas figurações em filmes, minisséries e comerciais de tv. No final, se chegando, Rivaldo Batista, mais um dos muitos figurantes.

Todos ao lado da igreja, ainda contidos, diferente das grandes estrelas e artistas que conhecemos, me contando sobre suas experiências, relações com os produtores, às suas maneiras falando sobre o que cada um acha de benefício, fosse no conhecer novas pessoas, na diversão das filmagens, no celular novo comprado com o pequeno cachê. Além de me passarem a agenda de gravações futuras.

A viagem foi curta, o tempo foi pouco, não daria para contar tudo sobre a pequena grande Cabaceiras. Discorrer as passagens no ateliê de couro do Seu Nino, o almoço no restaurante da Sandra, o sorvete na calçada de uma moradora, levaria tempo e mais espaço. Mas existe ali, uma personalidade já muito conhecida pelas mídias e por quem já pesquisou ou leu sobre a Roliúde Nordestina, Seu Zé de Cila.

José Nunes de Araújo Neto, 72 anos, Seu Zé de Cila, apelido que ganhou referente à sua mãe. O rapaz velho, como se auto refere, figurante e dublê de Rogério Cardoso, o padre n’O Auto da Compadecida. Uma semelhança forte de aparência que é percebida entre os dois.

Minha última parada foi no estabelecimento do Seu Zé. Uma conversa de uma hora e pouco mais, encontrei ele cochilando numa cadeira de balanço atrás do balcão, com as portas abertas, sem preocupar-se ou mesmo perceber minha chegada – despreocupação e confiança que ainda é presente e permanece nas pequenas cidades de interior.

O cutuquei, já o tinha visto na minha chegada e ele já aguardava o meu retorno. Diferente de como é conhecido, por receber as pessoas, com a batina – indicação “do” SEBRAE e “da” Globo (personificação das instituições), ele estava com roupa comum do dia a dia, um sapato vermelho e meias cinza no tornozelo. Despretensiosamente, permaneceu sentado ali e começou a me contar sua vida com a sabedoria e experiência de quem já muito foi procurado para entrevistas.

Seu Zé de Cila, um senhorzinho simpático, que mora aos fundos do seu estabelecimento comercial, que hoje, diz ele, não lucrar, só permanece ali para receber as pessoas que sempre chegam à cidade à procura dele, o padre.

O que é muito interessante nas falas de Seu Zé de Cila, é seu repertório de vida e a capacidade de conseguir discorrer muito bem os processos que a cidade passou. Ele me contou de quando a produtora d’O Auto da Compadecida, chegou à Cabaceiras pela primeira vez. Ele, com seu hábito de acordar muito cedo e ir varrer a calçada da frente, viu aquela van parar e algumas pessoas descerem e observar ao redor.

Fazem vinte anos da gravação do filme, e Seu Zé continua na memória com todos os detalhes, ou maior parte deles, desde quando o procuraram às pressas para gravar a cena do tiro do padre, até os detalhes que vieram conseguintes a essa participação que lhe valeram várias outras e um reconhecimento e repercussão internacional.

National Geographic é uma das revistas que o procurou para entrevistar no decorrer desses anos, além de várias outras que ele, todo orgulhoso, ao mesmo tempo que é natural para si, mostrou no seu balcão. E as produções são muitas.

Um personagem da cidade, que não é só mais um “ponto turístico”, mas um alguém que vale você tirar algumas horas para conversar. Crítico, me contou e fez uma análise muito importante sobre a cidade, expondo seus pensamentos sobre as questões de desenvolvimento local, colocando pra fora toda uma experiência e me ajudando a compreender mais sobre o que é como funciona a Roliúde Nordestina.

O sábado acabou, na volta, paramos no grande letreiro e tiramos algumas fotos. A narrativa já vinha sendo montada na minha cabeça, o que contar, o que ressaltar, o que trazer de novo. Cabaceiras é uma cidade que muito tem para mostrar, um set de filmagens, a festa do bode rei, as pessoas que se tornaram grandes artistas nas telas de cinema, ou personagens em pequenos documentários, artigos e teses ali produzidos.

Cabaceiras não é nem de longe Hollywood, economicamente falando, ou até mesmo em questões de produção. Mas Cabaceiras é Cabaceiras, uma cidade com um céu que nos faz querer parar horas para olhar. Cidade de pessoas acolhedoras e que mostra muito, e muito bem o que é o sertão nordestino.


Renan Lutiane é Cearense, meio crítico, meio errado. Aposta no jornalismo de subjetividade, mais humanizado. Leitor de vários fragmentos soltos, na falta de tempo, e de obras completas em paralelo. 


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