As Vitrines é uma composição de Chico Buarque lançada pela primeira vez no álbum Almanaque, de 1982, ao lado de outras belíssimas composições como O Meu Guri e Moto-contínuo. Ao longo dos anos, ela foi regravada por vários intérpretes, entre eles Gal Costa, Cauby Peixoto e Beto Guedes.
O que mais me encanta nesta letra, e me fez querer escrever sobre, foi a construção do vigia de uma forma muito detalhada em relação ao que lhe passa em frente aos olhos, destacando luzes e reflexos na pessoa observada. Falando nisso, veja a capa de Almanaque, um olhar fulminante de Chico.
Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha pra mim
Não faz assim, não vai lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Logo de cara o vigia já relata sua visão, além de dar conselhos e pedir que o olhar seja recíproco, o que não acontecerá em nenhum momento. Ele já revela traços de um sujeito obsessivo em relação à pessoa amada, o que se torna cada vez mais latente com a construção detalhada de sua vigilância.
Na segunda estrofe temos uma pista sobre o local onde se passa a ação, já que a palavra “sessão” pode nos remeter a um cinema, especialmente logo após o sujeito poético ter falado sobre os letreiros. E também surgem as primeiras consequências da liberdade da pessoa vigiada: ela se foi, está explorando outros espaços e a visão do observador se embaraça. Os dois últimos versos ainda trazem um notável contraponto entre “aflição” e “frouxa de rir”. É interessante pensar que essas percepções do vigia podem ser muito falhas em relação ao que está ocorrendo de fato, já que ele se mostra tão obsessivo com sua paixão. Sendo assim, ela estar aflita ou frouxa de rir podem ser reações causadas pelo filme, mas também podem apenas representar um olhar agoniado, à distância, que quer entender e sentir a pessoa amada.
Outro ponto interessante a se destacar é o movimento de colocar o ser observado como centro de tudo (o que será impulsionado nas estrofes seguintes): a pessoa está numa sessão de cinema, mas é o conteúdo da tela que a colore, ou seja, os letreiros não são destacados por si só, mas como efeito causado quando projetados nela.
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Nessa estrofe, que prepara para o refrão, ela parece gozar cada vez mais da liberdade, “brincando”, “gostando de ser”. E isso causa no vigia uma percepção de multiplicidade de sombras, uma imagem poderosa para representar o provável gosto pela vida ou simplesmente um desfile em meio a muitas luzes.
Mas são os dois últimos versos que me chamam mais a atenção, com três pontos distintos trazendo olhares e reflexos: o olhar do vigia, os olhos da pessoa observada e as vitrines. O vigia pode ver, nos olhos da pessoa, as vitrines, que, segundo ele, também estariam vendo-a passar. Essa é a parte que mais me encanta por utilizar de recursos poéticos em algo que poderia ser simples: observar uma pessoa passando em meio a compartimentos de vidro iluminados. Mas a construção de Chico Buarque destaca um jogo de luzes, criando imagens que tornam muito mais intensa a observação/obsessão daquele vigia.
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
No refrão, que também é a parte final da música, temos destacada a “galeria” como local onde se encontram as vitrines. Aos olhos do vigia, são as vitrines que observam a pessoa, e não o contrário, é ela que “passas em exposição”, mesmo no meio de um lugar onde tem-se objetos expostos. Esse movimento de colocar a pessoa como centro de tudo durante toda a canção destaca como ela brilha aos olhos do vigia, mesmo em locais onde outras luzes são muito mais destacadas (a tela do cinema, as vitrines de uma galeria).
A imagem final do vigia, “catando a poesia que entornas no chão”, também é belíssima. Ele não é notado, e, após ressaltar tanto o brilho da pessoa amada, colocando-a como centro do universo, observada até pelas vitrines, o que lhe resta é “catar a poesia”, os belos rastros deixados por esse ser tão iluminado.
Ainda vale destacar a parte musical da canção, um bolero melancólico lindamente cantado por Chico. O drama da letra é intensificado pela presença de violinos, violoncelos e violas. O piano de Francis Hime desfila junto às harmonias do violão e a guitarra de Hélio Delmiro tem aparições interessantes, apenas no momento que se fala a palavra “galeria”, trazendo uma espécie de desequilíbrio para aquela visão apaixonada.
Ficha técnica completa da música e do álbum:
https://discografia.discosdobrasil.com.br/discos/almanaque
Flávio Miranda é compositor, músico, estudante de Letras e, desde as brincadeiras de criança, gosta de escrever e registrar suas ideias. É apaixonado por artes e, quando acha que cabe em palavras, escreve, em seu perfil no Medium, análises de determinados aspectos de obras que te encantam.
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