Por aqui a primavera ainda não chegou. 

para estamira e joão do rio,  
que dobravam o mundo em mil pedaços 
e colocavam-no em seus bolsos. 

resumo 01:

este texto foi iniciado durante os primeiros meses do isolamento social e terminado mais de um ano depois – as primeiras vacinas já começam a chegar. focado na relação entre a escrita e as artes visuais, por aqui a primavera ainda não chegou apresenta o texto enquanto material escultórico. em seu conteúdo,  teoria e testemunho se esbarram como procedimentos resultantes do longo período de privação com o território urbano – ocasionado pela ainda atual pandemia de covid-19.  

resumo 02:

palavras-chave: verbo-visualidade, escrita de artista, montagem. 

[entrelinhas] 

                         enquanto o cursor pisca na tela em branco, antecipando a escrita que se seguirá, o som do
                         carro do ovo vibra contra as janelas de todos os prédios da vizinhança. hoje mais alto do que o 
                         habitual. o som do carro do ovo adentra a casa de janelas sempre abertas. assim se dá o 
                         caminho das palavras que carrego comigo e que porventura se acumulam no espaço entre as 
                         artes visuais e a escrita. elas sempre me tomam de assalto. pensar o lugar de entrelaçamento 
                         existiu primeiro quando o território urbano passou a me sibilar sua sinfonia quase silenciosa em
                        meio a tanto barulho das esquinas com o mundo.  

[de onde partir] 

este texto reapresenta imagens. imagens registradas em diferentes lugares, em diferentes tempos. o mundo era outro, num outro tempo em que o olhar para o banal dava-se enquanto exercício e não enquanto urgência de reinventar os dias. antes das janelas de casa virarem enquadramentos para uma paisagem que já dura mais de um ano. 

intertextualidades a partir do território ao qual tocam nossos pés. o espaço e o tempo recortados para a construção de um texto escrito a muitas mãos. palavras que aproximam lugares, que tornam a cidade uma sucessão de substantivos, adjetivos, verbos. cidade antes escrita por extenso em tudo o quanto é superfície. palavra que rasga, que enferruja, que molha, que se apaga.  

o encontro com outros modos de escrita no cotidiano faz brotar o texto como algo acumulativo, tal como o trabalho de arte que reorganiza elementos comuns ao ritmo urbano. como estará o mundo longe desse subúrbio? por aqui, as palavras são deixadas para morrer, esquecidas sob o sol. até que tomem outra forma que não frases completas, anúncios, placas de sinalização. a outra escrita demora a chegar, como uma das quatro estações – ela vem. podendo aparecer do encontro com palavras que chegam ao acaso, com as sensações de incompletude de tudo aquilo que não se apreende somente com as mãos, mas principalmente com os olhos e com a memória. 

[por aqui a primavera ainda não chegou] 

um pensamento em isolamento social: reencontro dentro de casa com as coisas que vieram de fora num outro tempo. mexer com as mãos no passado, nos rastros de um mundo que não existe mais. um procedimento que toma forma como outras leituras para as mesmas histórias. agrupamento entre fragmentos encontrados no território urbano, rascunhos e anotações produzidos no interior doméstico. sobreposição de memórias. 

                                                                                                      leitura tátil, produtora de conhecimento íntimo1: olhar 
                                                                                                      a rua impossibilitado de me fazer relacional, fui e fiz
                                                                                                      com a mão. 

assim, a escrita vai agir de modo a reorganizar, a partir de microprocedimentos, o mundo que a circunda. mesmo o mundo grande ao seu redor. sua carne é porosa e por suas veias circulam a coleção de rastros encontrados, negociando com o desejo, a construção de uma verbo-visualidade. aquilo que se escreve de outra maneira ao  

PROPOR ENCONTRO E APROPRIAÇÃO 

sendo possível, sussurrar que as coisas só se mostram ao se desmontarem. fragmentá-las e reordená-las seriam, então, alternativas ao excesso de imagens, de palavras que piscam, de objetos que pesam sua existência, de materiais abandonados que encontram outras maneiras de encenar suas formas. público e privado encontram-se no terreno arado pela intertextualidade, a expor os fragmentos sensíveis de zonas de encontros. aquilo deixado no fundo de uma gaveta é também o que pode ser encontrado sobre a calçada. experimentos abertos às futuras inserções. 

                                                                                                                     no que tropeço [nas ruas ou no íntimo de
                                                                                                                     meu quarto] são palavras pedindo 
                                                                                                                     passagem: remontar e esculpir para pensar   
                                                                                                                     como escrever.  

no entanto, as camadas da cidade, tais quais as da escrita, não são camadas visíveis. por isso convoco o processo de remontagem. desvelar aquilo do qual ambas são constituídas: suas experiências, seus percursos. 

esse lugar experienciado por uma percepção [olhar] familiar [afetivo] torna-se um lugar construído por imprevisibilidades e desafios ao senso comum. o que a mão extrai do material não é outra coisa que uma forma presente onde aglutinaram-se, inscritos, todos os tempos do lugar singular que constituem o material: a matéria é memória.”2 

mais do que experimentar a palavra em sua dimensão simbólica e material, por aqui a primavera ainda não chegou é, simultaneamente, testemunho e teoria, texto e imagem, forma e conteúdo, um encontro entre dois tempos. máquina do tempo ou aquele que nunca chega. escrita onde se inicia uma promessa sob o mormaço da língua. por aqui a primavera ainda não chegou, mas há de chegar. 

enquanto isso, será preciso olhar para o que compõe uma história – uma escrita-procedimento a partir de imagens. reconhecer seu acúmulo de textos, ficções construídas no encaixe entre um recorte e outro. neste procedimento é preciso ser agente da escrita avizinhada ao cotidiano, de um livro que nunca termina. escreve-se com o corpo inteiro, encontra-se a tinta da caneta nos vãos entre uma esquina e outra, nos descartes diários daquilo que de mais sensível a cidade nos apresenta: sua capacidade de comunicar outras mensagens. ou na memória que tudo isso deixa sobre o corpo – mesmo quando privado de contatar as esquinas. 

olhar arqueológico onde o que se encontra e o que se esculpe são as palavras. com a condição de não reduzir a arqueologia a um puro e simples amor pelos escombros  3, a montagem – também a escrita – talha as coisas habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente separadas. ela cria, portanto, um abalo e um movimento. tendo o material oriundo da montagem sido destacado de seu espaço normal, porque não para de correr, de migrar de uma temporalidade para a outra. 4 

a escrita e as artes visuais neste sentido vão pedir espaço para se coabitar, como em intersecção a revelar os “adros da língua”, esse espaço experimental e relacional que evidencia a singularidade que texto e obra anunciam a cada leitura. ler é um processo de acumulação. ler é se provocar por um germe de afeto linguístico, este que mantém a escrita viva apesar das armadilhas do tempo. 

[um bilhete] 

 
te aguardo em resposta aos vinte cartões 
postais que pensei te enviar também as flores 
digitais no e-mail sem comprovante ou recibo 
de pagamento a cobrar frete ou qualquer coisa 
ainda não faz frio mas você sabe como essa 
cidade deixa na pele da gente uma fina e  
espessa camada de geada toda vez que 
saímos antes da seis da manhã mesmo 
prometendo sol mesmo prometendo 
uma resposta na buzina dos ônibus 
em outro idioma essa cidade não sou eu 
essa cidade não são os meus pais 
nós não queremos morrer nesse país 
com silenciosos sonhos em outra língua 
para que não estranhem nosso sotaque 
lá vem a condução e nela encontrarei 
a moça que me jurou da próxima vez 
me mostrar onde se compra papéis 
para arquitetar fugas para reencantar 
os trópicos e quem sabe 
uma vez destinatário  
me torne também       remetente. 

[com quem fabulei] 

didi-huberman, georges. remontar, remontagem (do tempo). trad. milene migliano. caderno de leituras, n.47. belo horizonte, 2016. 

_________. ser crânio: lugar, contato, pensamento, escultura. trad. augustin de tugny e vera casa nova. belo horizonte: c/arte, 2009. 


Rafael Amorim é escritor, artista visual, mestrando no Programa de pós-graduação de Artes
Visuais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e graduado em Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA – UFRJ). Autor de “como tratar paisagens feridas” (Editora Garamond), atualmente desenvolve práticas artísticas voltadas para a reorganização de signos comuns ao território urbano e às materialidades da escrita letrada no trabalho em artes.



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