Corpo, identidade e diferença

ESCOLA DE FRANKFURT E A INDÚSTRIA CULTURAL: MASS MEDIA COMO FERRAMENTA ALIENADORA 

Durante a primeira metade do século XX a Escola de Frankfurt, na Alemanha, esteve à frente da teoria crítica em relação aos mecanismos de arte e cultura que massificaram a veiculação de conteúdo, e, portanto, se tornaram ferramentas de alienação social e psíquica a partir do que Theodor Adorno e Max Horkheimer chamaram de Indústria Cultural em Dialética do Esclarecimento (1947), célebre obra que continha os pressupostos teóricos para pensar uma crítica ao mass media1.  

Os principais veículos aos quais se referiam as críticas eram ambos o cinema e a televisão, tendo como núcleo as práticas e estratégias de propaganda ditadas pela classe dominante à classe dominada. No entanto, essa visão de cultura como instrumento de alienação em massa suscitava um enorme pessimismo e imobilismo por parte do espectador, levando-o ao status de passivo frente ao objeto de arte apenas como receptor, incapaz de dialogar criticamente com a mensagem ali veiculada. 

Para os frankfurtianos, o modernismo havia sido o programa cultural vencedor e, desta forma, era tido como alta arte, arte verdadeira, apontando para toda a produção fora dos movimentos de vanguarda como arte popular e, portanto, baixa arte, arte de massa. No entanto, Walter Benjamin, um importante teórico da Escola de Frankfurt relativiza esse pessimismo em relação a abordagem do objeto de arte quando escreve seu afamado ensaio intitulado A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1940) desenvolvendo importantes conceitos como “aura” e “politização/estetização da arte”. Segundo Benjamin, a arte poderia ser usada em prol da barbárie (estetização da arte) mas também poderia ser utilizada como ferramenta política, de denúncia (politização da arte), o que permitiria uma maior democratização do acesso ao objeto de arte devido sua capacidade de ser reproduzida infinitas vezes. A fotografia então se torna uma das principais linguagens para que isso se efetue, via cinema e propaganda. 

2. ESTUDOS CULTURAIS: REPRESENTAÇÃO E RECEPÇÃO 

Conforme a Escola de Frankfurt passa a perder força na década de 1960 devido à enorme eclosão de movimentos culturais como o feminismo, a emancipação da Àfrica e da Àsia e a revolução da comunidade gay, um grupo de pesquisadores britânicos lançam um olhar mais sensível em relação à noção de cultura, rompendo com o imobilismo dos frankfurtianos e dando origem ao que se tornou conhecido como Estudos Culturais, tendo como principais expoentes Richard Hoggart, Raymond Williams, E.P. Thompson. e o jamaicano Stuart Hall, considerado pai do multiculturalismo.  

Esses autores compreendem que a cultura deve ser entendida como um espaço de luta por significação e Hall acaba por se destacar ao estabelecer como objetivo o estudo da representação via predominância dos veículos midiáticos, tentando analisar como a mídia retrata a realidade e como os receptores dialogam com essas representações. A complexidade dos estudos culturais reside justamente no entendimento de que vivemos em uma constante transformação e, por isso, a teoria crítica dos frankfurtianos e seu imobilismo já não cabem para acessar a cultura no pós-moderno. 

Essas representações (cinematográficas, televisas, fotográficas etc) podem muito bem manipular o  espectador como gerar um movimento de resistência e rejeição a partir de determinada produção de significados. Assim, pode-se destacar que o mass media é capaz de criar um imaginário coletivo à respeito de determinados campos e agentes culturais, mas também pode ser ferramenta política para denúncia da barbárie, tal qual Benjamin o compreendeu. 

Nesse sentido, é inegável o fato de que a indústria cultural carrega uma grande influência negativa, elaborando sistematica e estrategicamente os elementos culturais que consumimos e muitas vezes estebelecemos como um imaginário cristalizado no que diz respeito às culturas afro e orientais. Edward Said em sua obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1978) nos chama a atenção para pensar como determinadas práticas culturais podem desempenhar um importante papel no desenvolvimento de estereótipos e falsas noções à respeito do “outro”, fora da cultura dominante. É na perspectiva dos estudos culturais que o presente texto pretende analisar as possíveis camadas da obra Mimics (1982) do artista canadense Jeff Wall sem a mínima pretensão de esgotar as possibilidades de leitura da obra. 

3. MIMICS: CORPO, IDENTIDADE E DIFERENÇA 

Uma vez compreendidas, ainda que de modo introdutório, as problemáticas e argumentações acerca dos conceitos de indústria cultural, mass media, estudos culturais e representação, torna-se possível enxergar através das lentes dos EC2 que durante muito tempo houve – e ainda há – de fato uma tentativa do Ocidente de representar o Oriente a partir de estereótipos que reforçam a imagem do “outro” – aquele fora da cultura dominante – como exótico, o étnico e também o “forasteiro”. A fotografia encenada de Jeff Wall intitulada Mimics (Mímica) de 1982 revela este olhar de forma brilhante e crítica. 

Figura 1 – Mimics (1982) Jeff Wall – Disponível em: <https://americansuburbx.com/2016/06/evocations-of-the-everyday-the-street-pictures-of-jeff-wall-2009.html>  Data de acesso: 05 abr. 2021 

A imagem retrata três pessoas que caminham por uma calçada: um homem asiático e um casal branco (um homem e uma mulher) que caminham de mãos dadas. Ao passo em que a mulher olha disfarçadamente para o lado, seu parceiro, por sua vez, deliberadamente insulta o outro rapaz ao tentar ridicularizá-lo puxando os olhos com o dedo do meio voltado para ele. 

Figura 2 – Detalhe da fig. 1 

Em termos de planejamento formal, a fotografia de Walls revela uma nítida separação no frame escolhido pelo artista, transposto do cinema para a fotografia (ambos veículos de mass media) com uma forte conotação na divisão racial entre Oriente e Ocidente (ainda que estejam em lados opostos ao mapa mundi). Curioso é que os pés dos personagens se espelham à medida em que caminham, sendo as do homem asiático espelhando a do homem branco e as de sua namorada espelhando as suas próprias pernas, quase como em um jogo de imitação, afinal de contas, Mimics é o nome da obra. Segundo o crítico de arte Will Gompertz (2013, p. 377), “A fotografia não foi um instantâneo, mas tirada após muitas horas de ensaio. […] Wall  toma as regras da cinematografia e as aplica à fotografia, para em seguida exibir o trabalho usando a tecnologia do anúncio beiculado num outdoor iluminado por trás, que vira viajando de ônibus na Europa.” 

No livro Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais (2014) Kathryn Woodward exemplifica de maneira ímpar conceitos que facilmente se aplicam à presente letiura de imagem. De acordo com  Woodward (2014, p. 40), os sistemas classificatórios, que nos fazem separar o mundo em pelo menos um binarismo pautado na oposição como nós/eles, locais/forasteiro ajudam a fabricar a noção de identidade de maneira simbólica ou por meio de exclusão social, fazendo com que a identidade dependa da diferença. Na mesma obra, em Tomaz Tadeu (2014, p. 81), encontraremos a seguinte afirmação, “Podemos dizer que onde existe diferenciação – ou seja – identidade e diferença – aí está presente o poder.” 

Jeff Walls ao fotografar essa situação levanta questões bastante conflitantes no que diz respeito ao olhar do insider (local) para com o outsider (forasteiro) via exclusão social e ridicularização por meio de gestos racistas a fim de reforçar a condição do asiático como o que não é bem-vindo. Nessa perspectiva, Tadeu (2014, p. 83) levanta considerações acerca da força que possui a “identidade normal”,  “Numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo ‘ser branco’ não é considerado uma identidade étnica ou racial. Num mundo governado pela hegemonia cultural estadunidense, ‘étnica’ é a música ou a comida dos outros países.” É justamente essa “identidade normal” que permite ao homem branco na condição de insider desmoralizar, diminuir e ofender o asiático enquanto outsider

Para mais, ainda é possível retomar em diálogo com Walter Benjamin e pensar na função política que a obra de arte assume no trabalho de Walls, afinal de contas, é uma obra que se apoia em um procedimento que é próprio dos meios midiáticos, fortemente criticados por Adorno e Horkheimer, mas que valoriza debates políticos no que tange o anti-racismo e às práticas de dominação cultural. 

Kátia Canton, em seu livro Corpo, Identidade e Erotismo (2009, p. 24) nos diz que, “Nas obras contemporâneas, em suas sensibilidades diversas, o corpo assume os papéis concomitantes de sujeito e objeto, que aparecem mesclados de forma a simbolizar a carne e a crítica, misturadas.” O corpo, segunda Canton, é “[…] nossa existência materializada e estetizada.” E é por intermédio dos corpos dos personagens que compõem Mimics que Walls ressalta ambas a diferença e a identidade de sujeitos que habitam o mesmo universo, mas que em sua diferenciação, podem levar à práticas de segregação. 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Ainda que os estudos culturais não abarquem completamente a noção de cultura a partir do pós-moderno, eles nos oferecem um amplo material teórico como apoio enquanto fomento de investigações e estudos de campo, bem como a crítica ao mass media e o sistema de representação, compreendendo-os como veículos de formação de identidade, mas que não entende o espectador apenas como receptor passivo e sim participativo, em certa medida, do diálogo que se estabelece a partir dos meios midiáticos e do público em massa. 

Buscou-se ao longo desta leitura, analisar a obra Mimics, do artista Jeff Walls, a partir de uma leitura dos estudos culturais de Kathryn Woodward e Tomaz Tadeu Silva a partir do que possa ser compreendido enquanto identidade e diferença em conversa com os conceitos dos frankfurtianos, tais quais Theodor Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin acerca da indústrial cultural e da politização da arte. Para além, compreende-se também a pertinência das reflexões de Kátia Canton no tocante ao corpo como veículo de identidade visual e cultural, mas que por vezes carrega um estigma e banalização frente à erotização dos corpos.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos; tradução Guido Antonio de Almeida. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica/ Walter Benjamin; organização e prefácio Márcio Seligmann-Silva; tradução Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre, RS: L&PM, 2020. 

CANTON, Katia.  Corpo, Identidade e Erotismo / Katia Canton. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. [Coleção temas da arte contemporânea] 

GOMPERTZ, Will. Isso é Arte?: 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje; tradução Maria Luiza X. de A. Borges; [revisão técnica: Bruno Moreschi]. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar. 2013. 

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 15. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 


Lucas Rocha é artista visual, professor de idiomas e arte-educador, graduado em Artes Visuais – Licenciatura, especialista em Docência em Literatura e Humanidades e pós-graduando em História da Arte: teoria e crítica. Atua na área da educação há 8 anos com uma abordagem pautada nos estudos decoloniais, culturais e literários, bem como temas transversais e uma proposta pedagógica plural. Tem como principais linhas de pesquisa crítica de arte, filosofia da arte (estética), antropologia da arte e estudos culturais.


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