O emprego das escrituras de gênero como um desafio linguístico: as dicotomias históricas e o emprego factível da língua por seus falantes

O presente trabalho objetiva sintetizar o debate presente no contexto da Linguística Contemporânea abordando a Virada Pragmática a partir da discussão acerca do emprego do gênero neutro e das limitações sistêmicas do português brasileiro. O corpus da análise se encontra amparado pelos estudos de POSSENTI (2012), COX (2010) SCHWINDT (2020) e BORBA & LOPES (2018).  

O primeiro ponto a ser pensado no estudo acerca das relações entre o sistema linguístico e o uso de tal conjunto de estruturas num meio social é o conceito de regra. Nesse ínterim, o capítulo Por que (não) ensinar gramática nas escolas de Possenti (2012) é fundamental. No texto, o pesquisador realiza uma reflexão acerca do ensino e do aprendizado do português nas escolas. Para tanto, é feita a diferenciação dos tipos de gramáticas. Possenti elenca três naturezas possíveis: gramáticas normativas, cuja frase que a sintetiza é o “conjunto de regras que devem ser seguidas” (2012, p. 64); as gramáticas descritivas, que seriam o “conjunto de regras que são seguidas” (idem, p. 65) e, finalmente, as gramáticas internalizadas, o “conjunto de regras que o falante domina” (idem, p. 69).  

Evidentemente, a posição teórica adotada por cada estudioso acerca da língua está intimamente relacionada com a definição de regra por ele adotada. Esse fato está interligado com a própria evolução da Linguística como uma ciência e seus diversos caminhos teóricos.  

Como aponta Maria Inês Pagliarini Cox (2010) em seu trabalho Quem tem ledo de sacrificar o Latim?  a Linguística se constituiu como ciência em 1916 com a publicação do Curso de Linguística Geral, livro atribuído a Ferdinand de Saussure. O CLG inaugura o novo modo de se compreender o estudo da linguagem partindo de concepções binárias (dicotomias), como langue versus parole e conceito versus imagem acústica.  

De um modo geral, a ciência produzida até a primeira metade do século XX se centrava na descrição do sistema linguístico por si mesmo. Essa abordagem exclui o uso da língua por seus usuários por considerarem a fala “caótica” e “irregular”. Dessa maneira, o fazer científico se estruturava a partir de uma noção de língua como um veículo do pensamento que, por isso mesmo, deveria representa-lo com clareza. Isso implicava a exclusão de diversos elementos constituintes da linguagem, como o contexto de produção.  

No entanto, a partir da segunda metade do referido século, a partir dos estudos de Émile de Benveniste, outra instância passou a ser considerada nos estudos linguísticos: o sentido. Esse mote levou a novas perspectivas de estudo, que passaram a refletir sobre o emprego do idioma por seus falantes a partir não mais do eixo reflexão-uso, mas a partir da noção de uso-reflexão-uso (COX, 2010, p. 243) ressignificando o conceito de regra. A esse movimento deu-se o nome de Virada Pragmática.  

Dentro de semelhante perspectiva, determinados conceitos são reavaliados. O mais importante deles é a ideia de que apenas o estudo sistemático das estruturas que sustentam um idioma seria suficiente para possibilitar ao cientista a compreensão de tal língua. Em contraponto, a análise do material produzido peça fala espontânea permite chegarmos a uma perspectiva mais próxima da realidade quando oferece não apenas o alicerce para o emprego do sistema, mas também suas descontinuidades operacionais. Isto é, demonstra que não necessariamente as formas presentes na estrutura formal da língua aparecerão na fala.  

Não obstante, ainda a contemporaneidade preserva correntes de pensamento intrinsecamente ligadas à ideia da língua como um conjunto ordenado de regras. Um dos mais representativos exemplos de semelhante pensamento pode ser observado no artigo Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico, de Luiz Carlos Schwindt (2020). No referi9do texto, o professor discorre sobre quatro situações envolvendo escrituras de gênero: o emprego da escrita feminina em termos como presidenta; a correspondência (ou não) entre os gêneros e as desinências lexicais -o e –a, bem como o número de palavras femininas e masculinas em português brasileiro; a probabilidade de uso de formas como amigx, amig@ e amigue e, por fim, o emprego e a compreensão de pronomes pessoais como ile, nile, dile, aquile, le. O autor adota uma postura formal ao longo do texto ao determinar que o gênero enquanto instância lexical se mantém a uma determinada distância do gênero como uma performance social. 

Em contraponto à essa perspectiva, Borba e Lopes (2018) se valem dos movimentos sociais que orbitam o emprego do gênero neutro para abordar a temática das descontinuidades entre as distintas posições teóricas, que ora favorecem a regra, ora o uso. Os autores discorrem, sobretudo, contrapondo as limitações intrínsecas ao sistema linguístico visto por si mesmo com a pluralidade de diferenças evidenciada pela fala espontânea.  

No texto Escrituras de Gênero e Políticas de Différance: Imundície Verbal e Letramentos de Intervenção no Cotidiano Escolar fica evidente que há resistência por parte da primeira corrente linguística (do sistema) para com as supostas irregularidades da fala. O artigo parte de um evento ocorrido no Colégio Pedro II, no qual teria sido empregado o X para apagar as distinções gráficas de gênero nas palavras. A partir daí, os autores elencam determinados dados históricos acerca do uso do X e suas conotações sociais, bem como refletem acerca do fato de que as gramáticas como as entendemos foram cunhadas segundo uma perspectiva fonofalogocêntrica. Os autores também elencam os elementos político-sociais envolvidos no processo de (des)legitimação da linguagem neutra e de outras marcações de gênero distintas do habitual. Por exemplo, o termo “presidenta”, cujo uso já estava dicionarizado desde o séc. XIX. A novidade, contudo, não teria sido o emprego de tal léxico, mas o fato de uma mulher ocupar o cargo da presidência. Esse fato dialoga diretamente como o embate ideológico presente no discurso do jornalista Reinaldo Azevedo acerca do tema, quando esse empregou os termos feminazi e gayzista (clara referência ao nazismo) quando publicou sua matéria acerca do ocorrido no colégio em questão. 

Naturalmente, a reflexão linguística aqui presente não versa sobre o arbítrio de empregar ou não o gênero neutro. Por sua vez, a reflexão se estabelece a partir do conflito entre os limites do sistema linguístico e a necessidade de se expressar determinadas noções (por exemplo, sujeitos que não sejam nem homem nem mulher). O sistema aqui, pois, entra não entra necessariamente em conflito com o uso da linguagem, mas somente se esse é tido como o único modelo de “falar adequado”. Ou seja, quando se elimina do debate o material produzido a partir do intercambio entre falantes da língua.  

Nesse texto, discutimos um recorte da história da linguística desde a publicação do CLG de Ferdinand de Saussure até a Virada Pragmática. Analisamos a transição proporcionada por semelhante movimento a partir do câmbio da noção de regra. Do mesmo modo, evidenciamos o descompasso existente entre a Linguística do Sistema e a Linguística do Uso a partir da proposta de emprego da linguagem em português brasileiro. Foi possível concluir, finalmente, que uma perspectiva não deve excluir a outra. No entanto, o entendimento da língua apenas como um sistema lógico de regras excluindo seu uso pelos falantes não é suficiente para uma compreensão expressiva dos cenários reais nela presentes.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

BORBA, Rodrigo; LOPES Adriana Carvalho. Escrituras de gênero e políticas de différance: imundície verbal e letramentos de intervenção no cotidiano escolar. Linguagem & Ensino, v. 21, 2018, p. 241-285. 

COX, Maria Inês Pagliarini. Quem tem medo de sacrificar o latim? In: BARROS, Solange Maria de; ASSIS-PETERSON, Ana Antônia de (Orgs.). Formação crítica de professores de línguas: desejos e possibilidades. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. 

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2012, 2ª. ed. 

SCHWINDT, Luiz Carlos. Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico. Revista da Abralin, v. 19, n. 1, p. 1-23, 2020. 


Ariel Von Ocker é escritora, psicanalista e poliglota. Autora com sete livros publicados, atua desenvolvendo pesquisas na área da psicanálise, literatura sob perspectivas historiográficas e análise do discurso. Atualmente, trabalha como editora-chefe no projeto Revista Ikebana . Além disso, atua como representante da literatura mato-grossense no Coletivo Escreviventes. 
 


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