Entre Vesúvio e Pink Floyd

Dezembro de 2016. Estávamos hospedados em um pequeno hotel no centro nervoso de Nápoles, próximo à estação ferroviária. 

Nas esquinas driblávamos montanhas de lixo e nos deparávamos com fachadas de prédios velhos e ruas estreitas repletas de imigrantes, refugiados de guerra, marginalizados, renegados. Vendiam de tudo entre um idioma e outro, buscando se fazer entender. Nós, eu e meu namorado, turistas óbvios, erámos interpelados em um inglês carregado de sotaques múltiplos. Entre os ambulantes, as jovens mães de rostos maquiados, sob casacos de onças de mentira e sobre saltos agulha empurravam carrinhos com bebês chorosos. Quase atropelando tudo e todos, nas ruas e nas calçadas, adolescentes destemidos passavam em suas motos velozes. 

Queríamos ver, ouvir, sentir, saborear Nápoles e andamos em busca do belo e do delicioso. No caminho comemos a pizza frita e o baba ao rum. Nos embasbacamos diante do quadro de Caravaggio na igrejinha Pio Monte dela Misericordia e visitamos o Castel dell’Ovo. Admiramos a marina e a orla elegantes da parte rica da cidade e avistamos o inclemente Vesúvio. Logo, quisemos dominá-lo, conquistá-lo, aproveitar que sua fúria estava adormecida e vencê-lo, olhá-lo de cima, de seu topo e gritar: “Você não me pega!”. Planejamos subi-lo no dia seguinte, porém uma sinusite me impediu de fazê-lo e o Vesúvio escapou da ridícula demonstração de poder de uma turista mequetrefe. Nem mesmo precisou cuspir um fiapo de fumaça. 

Então, fomos reverenciar as suas vítimas. Começamos pela pequena Herculano. Usamos a manhã inteira andando por suas ruas calçadas de pedras brancas que, segundo um guia, diminuía a escuridão das noites refletindo a luz da lua. Aproveitamos para estudar os afrescos e mosaicos das casas bem preservadas e a arquitetura do refeitório comunitário com suas grandes bancadas onde eram acomodados os panelões de sopa, a garantia de uma refeição descente por um preço amigável para os que não tinham cozinha em suas casas. Por fim, saciamos nossa curiosidade pelo trágico admirando em silêncio os esqueletos amontoados dos que tentaram sair da cidade pelo porto. 

Antes de deixarmos a pequena Herculano, comemos o que mais se espera comer na Itália: pizza. Depois, seguimos de trem para Pompéia e chegamos às três da tarde no sítio arqueológico que fechava junto com o pôr do sol, às cinco horas. Analisamos nossas possibilidades de exploração e decidimos por continuarmos trágicos. Com a ajuda do celular, traçamos uma rota até o Jardim dos Esquecidos e observaríamos o que fosse possível no caminho. 

Herculano é linda, no entanto o assombro em Pompéia é inigualável. O silêncio mortuário, que desliza sobre as pedras polidas do calçamento e que se espalha entre os muros altos de vias estreitas, manteve-nos calados. O tropeço em uma das pedras que orientavam carruagens me deixou atenta ao caminho. O preço da taça de vinho na placa de um estabelecimento era um registro da existência de vida sedenta em tempos remotos. O pôr do sol alaranjado emoldurava as construções e o Vesúvio se mostrava tranquilo igual a um bicho desmaiado a uma distância “segura”. Torci para que ele não despertasse e respirei aliviada por não ser mais um corpo de cinza envidraçado no Jardim. 

Do lado de cá da vitrine, eu era, para os que ali ficaram petrificados, a esperança e a garantia da existência de um futuro. Quase um canto de vitória de quem ascendeu de sobreviventes, se não do Vesúvio, de qualquer outra catástrofe já vivida pela humanidade. Eu era também a vergonha da necessidade de saciar o desejo primitivo de admirar a morte alheia. O amargo em minha boca era resultado da contemplação da minha própria decadência, ou talvez da inexistência do que decair, uma vez que a pequenez da minha compaixão e empatia pelo sofrimento alheio não era exemplo de superioridade. Ou, então, o que eu sentia era a prova da finitude da vida me obrigando a comparar a fragilidade do ser humano com a resistência de muros de pedra. 

Filosófica, psicológica e emocionalmente abalada, com os pés moídos dentro de meus tênis gastos pedi ao meu namorado dois minutos antes de fazermos o caminho de volta. Tranquilo, provando que a epifania fora apenas minha, ele apontou para a direção oposta a que tínhamos que seguir e disse: “Para lá fica o anfiteatro”. Meu cérebro fez reset, sorri um sopro de esperança por dignidade e orgulho e, em um ato impensado, uma vez que tínhamos pouco tempo para alcançar os portões de saída antes que fechassem, dei meia volta sobre os calcanhares inchados e desci a rua com energia renovada. Sentindo-me viva, respondi aos protestos de meu namorado que me seguia dizendo: “Onde o Pink Floyd tocou”. Ainda que o Vesúvio acordasse, eu alcançaria o anfiteatro. 

E bem ali, entre árvores que balançavam ao sabor do vento suas folhas farfalhantes, estava a majestosa construção circular com arcos em todo seu entorno. 

Entramos saboreando o momento e o lugar que sobreviveu à inclemência da natureza e que inspirou arte, vida e beleza. Desejei meus fones de ouvido e me imaginei em 1971. Fechei os olhos e Echoes tocou em minha mente. Custei a entender que não era o meu poder imaginativo e que, realmente, a música preenchia o espaço à minha volta. De repente, senti-me redimida, parte de algo grandioso, poderoso, algo muito além da minha necessidade primitiva do macabro, maior do que a simples prova de superioridade por estar viva e por o Vesúvio estar alheio à minha existência. Se, naquele instante, ele me dissesse: “Eu te pego”, eu sorriria feliz mesmo que vencida. 

Era doze de dezembro, eu tinha acabado de completar quarenta e um anos de idade e descobria que, ainda que a vida seja breve e imprevisível, que não escolherei quando nem como vou morrer, não preciso ter medo de não ter vivido experiências incríveis. 

Perdemos a noção do tempo e acabamos expulsos por seguranças que precisavam desligar a música e fechar o parque. 


Cíntia de Araújo. Sonhadora, escritora, artista, artesã. Nasceu em São Paulo, cresceu na Bahia e atualmente reside no Rio de Janeiro. Gosta de viajar pelo mundo e através da imaginação e tem muitas histórias para contar. Concluiu graduação em artes plásticas (Universidade Federal da Bahia/1998) e em administração (Universidade Anhembi Morumbi/2021). Escreve desde sempre, no entanto foi em 2019 que decidiu se dedicar ao estudo e à prática da escrita literária. 


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