Qualquer um em sã consciência e com empatia se sente perturbado nesses dias difíceis de pandemia. Faz mais de um ano que o normal virou um sonho e o pesadelo se tornou a realidade. Quinhentos e cinquenta mil mortos reportados. Imagina os que nem viraram estatística. Pessoas morrendo asfixiadas, literalmente, em busca de mais um sopro. Ademais, a fome que imperava nos anos noventa voltou aos jornais e aos olhos daqueles que assim como eu não conseguem virar o rosto para uma pessoa que me pede comida. Nesse panorama, não tem como se sentir normal e não se afetar.
Sou uma pessoa sensível e tendo a somatizar. O claustro, a privação social, o medo da morte sufocado começaram a me afetar consideravelmente, fazendo-me refletir sobre a vida e rever minha jornada nessa encarnação.
Foi então que optei por sair do jornal e aproveitar o que me resta de vida, já que um quarto desse meio século de existência dediquei-me a relatar à sociedade o cotidiano dessa grande metrópole. Não me casei, nem quis. Não tive filhos. O jornal era minha cria pois ajudei a funda-lo. Tinha sim um apartamento de dois quartos em Pinheiros, comprado na planta. Nele, tinha apenas uma cama, uma rede e um monte de livros. Decidi vende-lo. Mal sabia eu que seria um processo tão longo e demorado. “Vende-se” tinha se tornado a maior empresa de São Paulo. Não havia um bloco se quer em que sua presença não fosse notada, ao lado de “Aluga-se”, sua sócia na holding.
Meus dias passaram a ter uma rotina. Algo novo para mim, tão acostumado como inusitado e o imprevisível inerente à reportagem. Despertava pelas manhãs, lia meus jornais tomando café preto, puro e sem açúcar, e saia para caminhar um pouco pelas ruas. Ainda que não pudesse respirar o ar poluído de São Paulo – isso a pandemia tinha cooperado a reduzir – por causa da máscara que me fazia sentir meu próprio bafo, podia observar as ruas e ver gente, ainda que escassas, a caminhar. Ajudava-me a lidar um pouco com a situação. Às tardes eram exclusivas para as visitas ao apartamento, quando havia, ou aos telejornais. Passados três meses nessa rotina, a demora na venda, o tédio e a situação social começaram a me afetar consideravelmente.
Primeiro, desenvolvi asma. Nunca tive isso, mas acho que a clausura e aquele monte de livros estavam me afetando os pulmões. Vendi os livros ao sebo. Custear-me-iam a vida por alguns meses porque eram muitos. Passei a caminhar também pelas noites antes de dormir. Depois, veio a constipação. Aí foi foda! Dois dias sem cagar…tudo bem!
Quando comia churrasco passava por isso ou quando entrevistei o Mujica, meu ídolo. Mas estava já a sete dias sem defecar. Peguei-me imaginando a notícia. Traria no título os seguintes dizeres “Jornalista é encontrado putrefato e envolto em fezes em seu apartamento em Pinheiros”. No corpo do texto diria “foi encontrado por funcionários do prédio que estranharam a ausência de resposta do morador à coleta de lixo”. Enfezado, passei a caminhar três vezes ao dia. Li que caminhar, assim como chá de sene e ioga eram bons auxílios na desobstrução intestinal.
Foi quando vi o Senhor Formidável. Era o mendigo do quarteirão próximo à Rebouças que tinha essa alcunha porque toda vez que algum funcionário da padaria lhe dava algo para comer ou o dono da banca ao lado lhe dava cigarros, ele dizia “você é um garoto formidável!” com um sorriso sem molares no rosto. Ele estava agachado no jardim frontal de uma casa abandonada, de calça arreada e jornal nas mãos dando uma bela cagada. Fiquei com raiva e pensei “Porra! Até o mendigo!”. Continuei andando, mas logo parei me questionando, dessa vez em voz alta “Até o mendigo!?”. Voltei e perguntei-lhe, ainda de cócoras, o que lia. Ele virou a folha. Era o caderno “Ilustrado” e me disse “amenidades”. Nesse instante, não sei se me espantei pela palavra utilizada, por eu lhe ter perguntado ou por ele ter me respondido algo diferente de “você é um garoto formidável”. A partir daquele dia, passei a somente ler o caderno ilustrado nos jornais, assistir filmes e ler livros de ficção. Dois dias depois de assumir a rotina, o rei volta a seu trono. Ufa!
Fui à padaria, comprei um salgado. Parei na banca e comprei um maço de Marlboro. Entreguei o lanche ao mendigo e ele me pediu um cigarro apontando para meu bolso. Mirei-lhe nos olhos enquanto lhe ajudava com o isqueiro aceso. Antes que ele pudesse dizer algo, eu disse “O senhor é um homem formidável”.
Al Faquir é professor de Hatha Yoga e Meditação à mais de cinco anos. Estudou e leciona em seu berço, a Índia. Ensina a arte do Yoga seguindo a tradição para estrangeiros em Marrocos, Espanha, Brasil e Índia. Cidadão do mundo ainda que tenha nascido em Santos. Brasileiro de feições árabes. É Engenheiro Agrônomo formado pela ESALQ/USP. Leitor fanático desde a tenra infância, achou que nunca escreveria. Ao se casar com uma artista e oprimido pela pandemia, viu-se de caneta e bloco nas mãos a colocar suas ideias no papel. Acredita que a mensagem é mais importante que seu portador. Por isso opta em assinar como “Al Faqir”
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