Primeiro, sentiu morder a pele um barulho frouxo de saudade. Algo que miava como um gato. Algo que enxergava no escuro, esse íntimo de paredes. Estava só e o vento noturno lagarteava na manta sobre a poltrona. O frio de corpos que não sentam, nem saberiam mais a matéria das coisas triviais, caso voltassem das cinzas. Sua esposa, morta, não se recolheria mais ali para ler nos fins de tarde, as sobrancelhas franzidas e incrédulas sobre as páginas do último livro de Verena Cavalcante. Pela casa, restos de uísque e cólera, uma solidão estapafúrdia de quem já deveria ter se recuperado do luto. A vida segue. Os dias nascem, as pessoas trabalham, os pombos voam pela cidade. O corpo se move como a última resistência. Enquanto há carne, sobrevive o oxigênio mudo de quem transita vontades incessantes. Há muito tempo desejava isso, esse experimento do acidente e da loucura sobre a pele. A primeira mordida firme foi no antebraço, a veia fixa como o olhar antes do sangue escorrer pela mão. Muito menos indolor do que uma existência pretérita, mais afrodisíaco que o medo da perda. Gostou. Mordeu de novo. Sem esforço, arrancou o anelar, de onde caiu a aliança sonora sobre o chão. Sentiu o ouro amassado, o nervo ignorado. Não gritava, nem chorava. Na verdade, quase ria, mas aí diriam-na louca, encegueirada pela esposa morta há meses. Não era sandice, era algo tão racional quanto a saudade, esse luxo em um mundo onde não se permite a falta. E por mais que ela tentasse ignorar a agonia da existência, persistia a ausência daquelas manhãs onde os corpos dela e da esposa funcionavam, gozando antes de irem pro meio da rua. Atropelada, feito cachorra no cio, a esposa morta antes de voltar pra casa naquela manhã infinita. Imprensada entre uma moto e um poste, perto do parque onde ela ia correr dia sim, dia não. Tocando o coto do dedo fantasma, recém-desmembrado, entendeu que o descontrole não era, afinal, de si, nem do bêbado que saíra direto dos copos da madrugada para uma motociata às nove da manhã. Ele também se aproximava, sem saber, do derradeiro. A vida mesmo é que era descompensada, boa, e depois uma merda. E sendo a merda que era, mordeu-se de novo, arrancando dessa vez um pedaço da coxa direita. Sentiu a quentura escorrendo pela boca, o mais próximo que havia chegado de um remendo, de uma cura para a incredulidade. Cuspiu a carne maltratada no chão, ainda viva. Ali, jazia a filha infutura, as brigas que não se gritariam, os cílios descolados para sempre dos beijos. Ansiosa pelo desespero, atirou-se sobre a própria língua, o maxilar em juízo final. Assim, que os dentes consumissem o que o tempo filha da puta fazia questão de salvar. Arrancava-se para desaparecer, como a esposa, ser mais um corpo destruído pela vida. Mordia-se toda. 


 

Thainá Carvalho é uma escritora e colagista sergipana que atua em diversos projetos literários. É criadora da Revista Desvario, uma publicação digital sem fins lucrativos voltada à difusão da literatura contemporânea criada por mulheres. Lançou, pela Editora Penalux, os livros de poesias As coisas andam meio desalmadas (2020) e O Amor em breve anatomia das horas (2021). Organizou, junto com Amanda Reis, a antologia de poetas sergipanas Passos da pedra ao mar. Já publicou em revistas e portais como toró editorial, Jornal Rascunho, Portal Não Me Kahlo, Ruído Manifesto e A Estranhamente. @oxente_thaina


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