Um poeta na esquina 

Existe uma máxima na filosofia ubuntu* que diz, mais ou menos, assim: “Se você testemunha algo, você já é parte, já está conectado de alguma forma”. Começo usando essa máxima apenas para contar de um jovem poeta que conheci certa vez e do qual serei parte enquanto viver. Esse jovem foi a pessoa mais delicada que já conheci. Olhou-me com timidez de concha dentro do mar. Mas, com certo carinho, fiz o poeta se abrir. Ele sorria ao me ouvir chamá-lo de poeta, nobre demais para entrar na palavra já tão colonizada. No entanto, aceitou mostrar-me alguns de seus versos. Abriu a mochila num gesto lento, refinado como se degustasse o tempo numa dimensão outra. Tirou da mochila puída várias folhas de caderno, folhas abarrotadas, rabiscadas com caneta. Disse-me que a mochila andava carregada de papéis avulsos, poemas, frases inspiradas que lhe pousavam como pássaros pelo caminho. Por isso a mochila estava cheia, pesada de tantos poemas. Assim, explicou-me, a polícia, em baculejos, quando o sacudia, só encontrava poesia. Li com olhos marejados os versos daquele jovem. Um deles era sobre uma jovem a quem ele amava, mas cujo coração era selvagem, coração de menina livre. Ele escreveu: “A alma dela é feito pipa que se desprende da linha e eu não posso alcançar”. Esse verso ficou anotado em mim. Abraçamo-nos, o encontro acabou e o tempo passou. Era um encontro literário numa instituição de ensino. Tornei a ver o jovem poeta muito tempo depois, numa esquina de trânsito. Eu, da janela do ônibus, quando o vi, quis gritar “ei, poeta!” Mas contive o grito. Ele estava ocupado trabalhando, limpava o vidro de um carro, o sorriso no rosto, um par de tênis gasto. Da janela do ônibus, fiz uma pequena oração. Pedi pela salvação de sua poesia. O mundo é horrível, gosta de assassinar a tiros a poesia. Pedi que, quando o mundo abordasse o jovem poeta nos muros cinzas, só lhe encontrasse na mochila seus poemas cheios de ternura e esperança, palavra tão distante quanto um pássaro que vai, vai, vai. Nunca mais vi o jovem poeta. Se acaso, um dia, você o vir no sinal, diga-lhe que não o esqueci. 


*Ubuntu, filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras. Na tentativa da tradução para o português, ubuntu seria “humanidade para com os outros”. Uma pessoa com ubuntu tem consciência de que é afetada quando seus semelhantes são diminuídos, oprimidos. De ubuntu, as pessoas devem saber que o mundo não é uma ilha: “Eu sou porque nós somos”. 


Taylane Cruz nasceu em Aracaju, SE. É jornalista pela Universidade Federal de Sergipe e escritora. Autora dos livros publicados: Aula de dança e outros contos (Infographics), A pele das coisas (Multifoco), O sol dos dias (Penalux) e Para a hora do coração na mão (Penalux). Cronista na revista de crônicas RUBEM. Possui ainda contos publicados em diversos sites, antologias e revistas pelo país. Membro da Academia de Letras de Aracaju, também ministra cursos de escrita criativa.  @taylanecrux 


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