“Tente este. Se você não gostar, eu tenho outros.”
Originalmente publicado em Inglês no LitHub, em 24/08/2022.
Tradução de Carol Cadinelli.[1]
Acho que todo aspirante a escritor deveria trabalhar em um sebo. Por um tempo, pelo menos. No mínimo, vai servir para assassinar o seu ego.
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Eu tive sorte. Fui agraciado com uma bolsa de estudos durante meu mestrado em Artes, o que me deixou com bastante tempo para focar na minha escrita e para ter esse trabalho dos sonhos. Eu, escondido em uma das instituições de Ann Arbor – a Livraria Peregrina da Alvorada[2] -, fazendo vezes de Sísifo, organizo alegremente pilhas e pilhas de exemplares usados e empoeirados. Há muitas partes do chão dessa loja que eu nunca vi; estão cobertas por livros desde que comecei a trabalhar aqui. O serviço nunca acaba; sempre há mais prateleiras para organizar.
“Recebemos novos títulos todos os dias”, digo às pessoas, desapontado por não conseguir encontrar exatamente o que elas vieram buscar. Pelo menos uma vez por semana, alguém chega procurando por Amada (Toni Morrison), Duna (Frank Herbert) ou A História Secreta (Donna Tartt) e ficam impressionados quando digo, sem consultar o estoque, que não temos esses. Como todo mundo está procurando os mesmos livros, sempre sei quando chega e sai qualquer exemplar deles.
Para aproveitar melhor a experiência de estar em um sebo, eu recomendo que você trate o lugar como um brechó, uma loja de antiguidades, ou uma de departamentos. O lugar dita o que você quer; o seu desejo depende do que está disponível.
Alguns clientes passam e tropeçam na grande coluna de volumes de Dave Eggers que temos.
“Tive que ler isso no ensino médio”, dizem uns aos outros. “Detestei.”
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Será que existe uma palavra alemã cujo significado é “estar cercado por pilhas de romances outrora celebrados, agora esquecidos, empilhados em um porão profundamente assombrado, se perguntando: ‘E se o meu livro acabar aqui?’”?
Três anos estudando alemão no ensino médio não me proporcionaram um vocabulário amplo o suficiente para eu responder a essa pergunta. Felizmente, sei respondê-la no português; a palavra para isso é ‘tristeza’.
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Um cliente pede uma recomendação. “Algo bom.”
“Desculpe”, eu brinco. “Acabou de ser vendido.”
Entre as pilhas, encontro um livro escrito pelo meu professor de graduação.
Na folha de rosto, uma linda dedicatória para alguém chamada Katherine.
Acho que ela não o queria mais.
Esses clientes nunca leram Toni Morrison, mas raramente temos algum de seus livros em estoque. As obras da grandiosa falecida sempre saem assim que chegam à loja, o que é mais do que justo.
“Ela é fantástica”, digo. “Ganhou o Prêmio Nobel em 93.”
Meu interlocutor, em geral, trata essa informação com desimportância ou repúdio. “O Prêmio Nobel”, dizem, “é para todos esses fascistas e pedófilos”. Retruco, garantindo que Morrison não era nenhum dos dois.
No porão, temos pilhas e pilhas de Andre Gidé (pedófilo), e excessos de Knut Hamsun (fascista). Desde que trabalho aqui, ninguém nunca chegou procurando uma obra deles.
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Quais são os livros que acabam em sebos? É uma equação interessante. Muitos são carimbados com a insígnia da Oprah[3], enfeitados com adesivos de “Finalista” ou cobertos por sinopses holográficas. Populares e/ou elogiados o suficiente para serem amplamente distribuídos; o suficiente para serem amados por alguns e rejeitados por muitos outros, indiferentes.
Sebos costumam lidar com extremos: exemplares diversos da coleção Grandes Leituras[4], descartados imediatamente após uma prova de Literatura 1, e artefatos proibitivamente caros (digamos, uma primeira edição de Grande Sertão, Veredas, por cinco mil reais)[5]. As caixas de vidro abrigam este último a sete chaves. Como livreiros de usados, estamos acostumados a tratar livros como tijolos – tijolos muito bonitos e, às vezes, sentimentalmente valiosos. Para ser honesto e decepcionantemente mercenário, o nosso negócio em sebos não é necessariamente fazer as pessoas lerem livros, mas sim fazer com que elas os comprem.
Ao comprar para a loja, elimino as publicações independentes de má qualidade, os encharcados, os violentamente fanáticos, o milésimo Sidney Sheldon[6]. O que queremos trazer para a loja é algo que alguém possa amar um dia. Para isso, porém, alguém precisa desistir deste algo primeiro.
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Minha agente e eu fizemos um acordo: não me dizer nada até que meu livro fosse vendido.
Depois de meses de espera, pedi um retorno, que eu já sabia qual seria. Meu livro não vendeu.
Ouvi “I Wanna Get Better”, do Bleachers, 17 vezes seguidas.
Eu estava me precipitando, não estava? Imaginando meu singelo livro de estreia empoleirado precariamente entre as obras menores de Clarice Lispector[7] e as montanhas de John Green[8].
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A livraria adquire um exemplar de primeira edição, autografado, completo, com estojo, do título de estreia de um amigo escritor. Eu o levo para casa, com medo de que seu autor passe na loja e o veja sendo vendido por um preço abaixo do valor sugerido de capa. Eu não seria capaz de perguntar a ele sobre a sensação de ver seu livro ali. Não tenho ideia de onde veio o exemplar. Parece nunca ter sido aberto. Eu o leio, e ele me faz chorar.
Entre as pilhas, encontro um livro escrito pelo meu professor de graduação. Na folha de rosto, uma linda dedicatória para alguém chamada Katherine. Acho que ela não o queria mais. Penso que, talvez, ela tenha morrido; mas isso não me conforta.
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Minha cliente favorita vem toda semana em busca de sua próxima leitura. Embora nós realmente recebamos exemplares novos todos os dias – seja de universitários vendendo de volta suas leituras obrigatórias ou de rabugentos de meia-idade doando as bibliotecas de seus pais recentemente falecidos –, raramente encontro algo que sei que ela vai gostar, ou mesmo algo que eu próprio já tenha lido.
“Graças a Deus”, digo em voz alta ao desenterrar uma cópia surrada de Os Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro, do fundo de uma caixa cheia de histórias da guerra civil e de títulos de Bill O’Reilly. Eu a escondo no caixa para aquele momento desesperador quando um cliente pergunta: “Tem alguma recomendação?”, e minha mente fica tão vazia quanto minha conta bancária no fim do mês.
O que raios eu estou fazendo? Meu chefe estima que haja aproximadamente cem mil livros na loja, incluindo todas as duplicatas no porão, e eu fico perplexo ao ver as pessoas indo embora de mãos vazias. Há mais livros aqui do que pessoas nesta cidade, e você não foi capaz de achar um mísero interessante o suficiente para levar para casa? Bem, não que eu esteja ajudando, aparentemente.
Decido ler todos os livros da loja.
Falho.
Em vez disso, procuro títulos que temos em excesso. Volumes curtos, que estejam sempre em estoque e que sejam bons o suficiente para recomendar sem bajulação ou condescendência. Estou cercado de livros que eu talvez ame, cada um encrustado de elogios superlativos em suas capas, contracapas e orelhas, implorando para serem lembrados e lidos.
Me vem, então, uma epifania quase embaraçosa. A verdade é que eu tenho esperado que algo familiar, confiável, apareça nas caixas de doação, em vez de procurar qualquer coisa que seja nova para mim dentro de todo esse antigo alheio ao meu redor.
Todas as nossas pilhas de “para ler” se erguem sobre nós.
Como abolir a insistente marcha do tempo e do esquecimento?
Eu encontro muitos exemplares de Masks[9] (Fumiko Enchi) e um depósito de The Doctor’s Wife[10] (Sawako Ariyoshi). Eu os recomendo até que acabem.
Os contos de Jill McCorkle; Charming Billy[11], de Alice McDermott; Ceremony[12], de Leslie Marmon Silko. Eu vendo o mesmo livro várias vezes. Agora, todos também se foram.
Temos 58 exemplares de O País das Neves, de Yasunari Kawabata – ganhador do Nobel, felizmente nem pedófilo, nem fascista. Eu nunca tinha ouvido falar dele. Seu amigo e oposto cósmico, Yukio Mishima, desfruta de mais lembranças e atenção.
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O mundo se move muito rápido e a leitura é um passatempo lento. Todas as nossas pilhas de “para ler” se erguem sobre nós. Como abolir a insistente marcha do tempo e do esquecimento? Imagino-me movendo através da memória em câmera lenta da queima da Biblioteca de Alexandria, com os braços pesados de tantos livros antigos que você precisa ler.
OK. Não é tão romântico.
É dolorido dizer, mas cem mil livros é, talvez, livros demais.
As infinitas opções são capazes de deixar qualquer um indeciso e mentalmente sobrecarregado.
“Aqui”, eu digo ao potencial comprador paralisado de indecisão enquanto estendo um exemplar. “Tente este. Se você não gostar, eu tenho outros.”
Eu escrevi outro livro. Minha agente me diz que não pode vender o manuscrito, pois é muito parecido com o anterior. Ela está certa, claro. Eu escrevo o mesmo livro várias vezes.
*
Você já leu O País das Neves?
Deveria. É bom.
É uma história de amor. Ou algo assim.
Temos 40 cópias dele, embora algumas tenham se desfeito em minhas mãos.
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O livro é um objeto estranho.
Os sortudos sobrevivem aos seus autores. Os mais sortudos sobrevivem também aos seus donos originais. Um livro usado, quer caia da prateleira no seu colo, quer seja jogado sobre você pelo garoto agachado atrás do balcão, vive uma segunda vida.
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Eu escuto “It’ll All Work Out”, de Phoebe Bridgers, 31 vezes seguidas.
Começo a escrever outro livro.
[1] NT: Optei, neste texto, por manter as referências a títulos específicos citados pelo autor, mas substituir títulos e autores utilizados como suporte para exemplificar alguma situação recorrente em sebos por nomes mais familiares ao leitor brasileiro. Nos casos de substituição, trago a referência original em nota.
[2] NT: The Dawn Treader Book Shop
[3] NT: A ‘insígnia da Oprah’ é um símbolo impresso na capa de determinados lançamentos literários que eram escolhidos pela apresentadora de TV americana Oprah Winfrey como indicações de leitura. No final dos anos 90, início dos 2000, títulos marcados com a insígnia da Oprah tinham grandes chances de se tornarem best sellers.
[4] NT: No original, o autor faz referência a livros de Dickens publicados na coleção ‘Dover Thrift’, reconhecida por suas edições simples e de baixo custo.
[5] NT: No original, o autor menciona uma primeira edição do Livro dos Mortos tibetano, um dos livros considerados sagrados nas vertentes tibetanas do budismo.
[6] NT: No original, o autor menciona uma autora não tão comum de ser encontrada em sebos brasileiros: Joyce Carol Oates.
[7] NT: No original, o autor cita John Irving – cujas obras, no Brasil, são bastante raras de serem encontradas em sebos.
[8] NT: No original, o autor cita Thomas Mann – cujas obras são bem menos frequentes em sebos brasileiros que as do autor americano John Green, que teve pico de popularidade nos anos 2010.
[9] NT: Título sem tradução para o Português
[10] NT: Título sem tradução para o Português
[11] NT: Título sem tradução para o Português
[12] NT: Título sem tradução para o Português
Carl Lavigne é escritor nascido em Georgia (VT), nos Estados Unidos – uma cidade que não tem semáforos nem CEP. É Mestre em Artes pela Universidade do Michigan. Já publicou em revistas como a Joyland, a Guernica e a Ploughshares.
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