Na voz de um pássaro

Queria estar falando na voz de um pássaro… no ruído ressonante de um roçar de  corpos líquidos em movimentos ancestrais, como quem brinca com cristais de sais invisíveis.  Em uma euforia sinfônica de aves e peixes, presentes na densidade infinita do m[ar]. Entre a  voz, o som, o chiado e o voo. Num ruído distante da terra, na lama que rumina com a água;  nascente e perene, “debaixo do barro do chão”, ensonado pelo movimento das placas  tectônicas que deslocam territórios-vivos, físicos e existenciais. Terras que engolem raízes  debaixo dos pés, raízes que transam entre camadas espumadas produzindo flutuações  orgásticas, orgânicas-inorgânicas; sem órgãos. No mormaço de um corpo voejante que paira,  na duração de um repouso leve que transpira alegria, na velocidade de um lampejo, o clarão  presente na intermitência de um som-ondas que atravessa um bocejo ensolarado que cria o  sem fim.   

Da sonda espacial ao movimento de corpos expostos ao sol, da revoada alienígena  que salpica de cores carbônicas, ao amanhã que em breve nascerá escorrendo mais um dia  sobrevivente. No encontro do cinza com o amarelo queimado, uma mistura paradoxal, um  mar vazante, rios voadores que percorrem e roem paraquedas lunares, e que surge rugindo  do outro lado que é lado, entre os trópicos quiméricos de uma transtopia-tropical.   

Debaixo desse céu rachado, na subida de um rio passante, um corpo serpenteia entre as veias tangentes do sertão. Quase tudo vira lama, quase tudo mora dentro de um fóssil  cristalizado, quase tudo trans-borda e povoa o fundo de um olho bordado da mata. E quase  tudo mata, exceto os sonhos, as composições carbônicas dos espíritos vegetais.   

A voz da ave que num bote certeiro tro-voa no meio do mundo, que muda e se  desmancha na ponta de uma lança lançada no tempo leve, e sendo voz de pássaro, não seria  nem o piado cantado, nem o silêncio das algas que dançam sem asas no fundo do mar. Dos  encontros que passeiam com pássaros, algas, mares, montanhas, florestas e ventanias. Digo  da confluência com os espíritos vegetais, os sonhos, as vespas, os caracóis, os cogumelos, os  vaga-lumes e com tudo mais que couber nesse pangaio.  

Veredas no ar são gases neon. Soslaio-malaico não precisa ter um significado, nem  mesmo ser permanente a qualquer cor indizível. Mundos indiscerníveis, mundos-mutantes  que nascem bordados na primeira luz da manhã. Criança brincante, que delira com as  

sombras das plantas e de outros animais… “entre o sonho e o som”, maracás nas mãos de um  novo Pajé viajante, à beira do Pajeú. Cinema que vira uma feira no intestino das imagens sertão. Mercados circulantes por entre vielas e becos; uma intensa multidão de imagens sonoras, sonidos que atravessam paisagens fractais.   

Na velocidade de um raio, uma explosão de átomos cria a cada instante uma maneira  de existir. A dança de um vírus que fatalmente tem improvisado um passo torto com a vida,  mudando nossa própria rotina, retina estirada no meio do campo. Rastro pisado é mais um  rastro de gado contemporâneo. Concentração é maquiagem para a palavra extermínio, que  esconde debaixo das patas os corpos dessa agro-nação. Ewé, salve! que é das folhas que vem  da Jurema a força do mundo. Axé das Gerais e da Bahia de todos os santos!   

O arado da vida é mais que um instrumento que abre passagem para o futuro de antes,  entoado de alegria, na figura de uma semente-serpente; a boca do mundo que vira e revira o  astro rei, engolindo ruínas entranhada na terra sagrada e que geme no meio da mata dos  Tupinambás.   

Da força que vem das folhas a borbulha de um olho d’água aberto de um chão  rachado, que atravessa as caixas d’águas abandonada nas bordas do sertão, da boca aberta de  um chafariz de uma cidade no interior.   

Sabe aquele chiado que dá entre a água e o vento, e que só se ouve quando estamos  em silêncio? Mara Hope! Mar-adentro! Maravilha! Mundo a fora! Som que trepida na borda  de um copo vazio. Sem lentes lunares, garrafas retornáveis que no fundo de um vidro  submerso imprime rostos retorcidos de um mundo descartável. Da máscara carcomida a casca  ferida impressa nas telas invisíveis do desejo, segue um rasgo antigo, um velho conhecido.  Organismos devoradores de um estado em putrefação, e ninguém aqui além dos trópicos  querem mais saber de ser cidade-cidadão, civilização, modernização.   

São muitas as bocas, os estômagos e os cus. Os vômitos, os dias de ressaca, a urina,  o suor e a lágrima artificial que escorre do olho biônico de um galo cego. Sigo cego, do  buraco no centro da casa aberta, invadida pelo sol massivo sobre o corpo metálico e  alaranjado de ferrugem, a queimadura exposta que vem da maresia ardente de todas as tardes  e de certas manhãs, em que nada imprime, só print em uma tela plana implantada na palma  da mão, na pata do cão, no olho de um furacão.  

A velocidade das asas de um drone sulamericano, o cérebro de uma caverna, a  inteligência de uma floresta. Tudo passa pelo pensamento contemporâneo de um camaleão  originário que espia nuvens de um baobá. Um rádio nativo contra-radioativo, presente nos  sonhos de um pássaro-caramujo, no pensamento de uma criança-vegetal, no voo de cobras  corais, um prelúdio que antecede o interminável, e que ao fim, escaparíamos dos detectores  de metais presos nos intestinos das imagens comercializadas que engolimos com engov, sal  de frutas, relaxante muscular, antibióticos, insulina, losartana potássica, psicotrópicos,  mercúrio, glifosato, e polietileno açucarado. Compostos que não passam de sobras indigestas  nesse mundo tóxico que avança a galopadas sincopadas, racionalizada, estratificando os  corpos.   

Viramos fósseis antes mesmo dos vegetais, e digo mais: a vida não é mais assim tão  perfumada. Não precisamos ser salvos. A humanidade é um projeto falho-fálico do homem.  Um escafandrista a bye-lar em solo marciano. Saravá, Sarajevo, um Syará das ilusões. Sem  louvação, sem procissão, a procura do asfalto, do centro, das urbes sem urubus. Viveremos  em um mundo [des]trópico. 


Harley Almeida é Antropólogo-artista, Artista-pesquisador, ambulante sonoro e imagético, e etc. Experimenta com: audiovisual, poesia, fotografia, rabiscagens, sonoridades, musicalidades, dispositivos móveis e software freeware. É graduado no famigerado BHU – Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades (UNILAB) e em Antropologia (UNILAB). Especialista em Segurança Alimentar e Nutricional (UNILAB/UNESP). Mestrando em Artes (UFC), é membro do coletivo k-talises e do Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR). Tem se debruçado em temas como: alimentação e trabalho, encantarias e festas, sonhos e espíritos vegetais. Tem interesse em discussões com: antropoceno, movimentos migratórios, fome, ruralidades, interiorização, aquecimento global, catástrofes climáticas e ambientais.  
 


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