Quatro tempos de um Maio  

Se tu visses o tamanho da merda, juro, se tu estivesses dentro das minhas calças naquele dia, sim, tu também terias meio que te mijado. Sem mentira, segurei por pouco e porque a vergonha já estava suficiente como estava. Além disso, uma doença sem um nome específico tem, para dizer o mínimo, me incomodado bastante. Interfere nos meus pensamentos fisicamente falando, já que estou tossindo de minuto a minuto, uma situação que parece me colocar lado a lado aos condenados. Dramatizo um pouco, eu sei. O fato é que confessar o que virá não me deixa confortável, pois não saber lidar com um corpo doente, especialmente sendo o meu, me torna uma pessoa meio inapta, incapaz de saber coisas inusitadas sobre a própria saúde. Tudo isso, te digo para saberes o nível das minhas capacidades de enfrentamento. Sinceramente, eu mesma quase ignoro aquela merda diante da merda de estar doente e não melhorar nunca.  

Já comi todo o mel de uma colméia, tenho tomado água como se estivéssemos no verão, própolis pela manhã, ao meio dia, à noite e estou prestes a diminuir os intervalos de consumo. Minha garganta dói e já não sei mais como identificar os sintomas deste corpo aqui que eu imaginava conhecer antes da Covid-19 vir atrapalhar esses mesmos parcos conhecimentos adquiridos em quatro décadas de vida vivida entre germes, bactérias, vírus outros e sabe-se-lá mais o quê. O problema é que esses dois anos de confinamento parcial, sem contato com essa fauna, deve ter me deixado despreparada e quando resolvi me envolver novamente, não demorou muito para o organismo se fazer de rogado e começar a manifestar pequenas falhas até a pane total na qual me encontro neste exato momento, ou melhor, desde a semana passada. Então, aquela merda acabou se diluindo num fluido contínuo que escorre do meu nariz. O pior de tudo é que faz três dias que só chove em Porto Alegre.  

O lado bom foi que terminei o romance do José Agrippino de Paula que eu achei que acabaria com a minha prática de recriação mental das imagens escritas. As imagens do Agrippino são tão loucas que quando eu cochilava, o processo de pensar do sonho não era lá muito diferente da narrativa registrada em letras (olhar a fonte no final do livro). Foi quase um alívio sair daquela loucura porque se alguém chegasse para mim, na minha frente, olha fulana, tenho que te contar uma história, e viesse com aquele texto, eu não pensaria em outra coisa, loucura! Por isso que eu 

gosto de arte. Porque arte permite abrir a vida para o que de outra forma seria só uma solitária, choque elétrico e comida podre. E mais, na arte não se precisa performar a sanidade o tempo inteiro como manda a ordem burguesa desde que a proibição do incesto foi tomada como pedra fundadora da civilização (para tu veres como as coisas vem bem desde…).  

Quando guardei o livro na pilha dos lidos em 2022, cof, cof, cof, coooof, cof, era o momento de retirar outro da outra pilha dos por ler. Retirar um livro que pudesse me animar na doença ou nem me animar, mas facilitar a minha leitura, porque só quem leu PanAmérica sabe o ritmo que se precisa engrenar para fazer a história acontecer na tua mente. Se ficar ali soletrando palavra por palavra vai morrer antes de entender do que se trata, porque se tem um livro que trata de ritmo quase no stricto sensu, esse livro é PanAmérica e que venham os críticos “de verdade” dizer alguma outra coisa mais inteligente que eu existo para ouvir, ainda mais agora que pelo menos os meus tímpanos voltaram ao normal ou não bem ao normal, somente desinflamaram. Aí, por alguma razão daquelas que me vem quando estou escolhendo literatura, razão heterogênea e circunstancial, resolvi pegar um dito thriller.  

Outro que tem a ver com ritmo. Aliás, tenho me interessado por thrillers, mas, seguinte, no embalo de Michael Jackson, não sei não, as coisas tem me parecido assim sangue e violência sexual, com gente perturbada, cheia de traumas. Por que precisa ser assim? Porque os thrillers não podem acontecer a partir de pessoas normais, tão normais que acordam de manhã e fazem coisas que nunca imaginaram fazer. Nem todo assassino tem um passado traumático e desenvolveu algum transtorno. Caso assim fosse, todos aqueles que sangram bois, vacas, porcos, quebram pescoços de galinhas, todas as nossas vovozinhas seriam sanguinárias matadoras diabólicas, umas psicopatas. Aliás, eu li o romance em dois dias, ou numa tarde mais uma manhã. Porque, sim, ali o ritmo é o do mistério, é o do que pode acontecer, junto ao esquema clássico de quem faz o quê e como. Agatha Christie, o mistério detetivesco: algo que me chamou a atenção quando reli dois de seus livros este ano, foi que a autora não dá muitas pistas para de fato participarmos da investigação. Aliás, as autoras e os autores do gênero quase nunca nos dão, é sempre uma revelação daquelas inesperadas que te fazem se sentir a pior pessoa – em termos de observação – da face da terra. 

Aquele dia não vinha com cara de quem tinha dormido uma noite decente. Aquelas caras com a boca repuxada nos cantos e os olhos semiabertos, olhos de ser que pretende caçar, mas não tem força.  

17 de maio, 12:15  

Há indicação do serviço de meteorologia de que enfrentaremos um ciclone incomum. Desde ontem estou alguma coisa intrigada e já antecipando dores de cabeça, sem contar a preocupação mais geral sobre o que pode se abater aqui neste Estado do RS, maltratado pela prepotência ignorante de seu próprio povo, sempre pronto a eleger a ganância privatista contra a coisa comum. Além de só fazerem pelas construtoras, pela monocultura (e fazerem mal), além de só fazerem por indústrias já estabelecidas, tratando médios e pequenos só no discurso e na taxação, além de não garantir recurso e não fazer manutenção de nada que é de uso comum, além disso tudo, além de estarmos aqui sem qualquer possibilidade de nos protegermos ou protegermos as pessoas ao nosso redor, além disso: tudo parece normal lá fora.  


Referências:  

CHRISTIE, Agatha. Cai o pano: o último caso de Poirot. São Paulo: Mediafashion, 2019.  

CHRISTIE, Agatha. Assassinato no Expresso Oriente. São Paulo: Mediafashion, 2019.  

DE PAULA, José Agrippino. PanAmérica. São Paulo: Editora Papagaio, 2001.  

JACKSON, Michel. Thriller (official video), [1983]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sOnqjkJTMaA. Acesso em 11/08/2022.  

MONTES, Raphael. Uma mulher no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 


Sara Caumo Guerra está doutoranda em Antropologia (PPGAS/UFRGS), pesquisadora-investigadora, que luta contra o tédio, sempre à espreita, sem se esconder. Mestra em Antropologia (PPGAS/UFRGS), é bacharel e licenciada em Ciências Sociais (UFRGS), também estudou História – Licenciatura Plena (FAPA). Andou pela cidade-capital do Rio de Janeiro por causa das amigas, dos amigos, do que não sabia e da Especialização em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/UERJ). Atualmente está em campo, estudando investigação policial em alguma delegacia de Porto Alegre/RS, porém nasceu em Garibaldi/RS, no São João de 1982. 
 


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