Brasil: multiverso da brancura

Gosto de ler o diverso. Romances românticos, distopias, dramas, um policial de vez em quando, teses e dissertações, livros de crônicas e contos, histórias de família e poemas, mais raramente um livro de autoajuda ou religioso. Li faz algum tempo Doutor Estranho – Sina dos Sonhos, escrito por Devin Grayson para a Marvel. Fã dos filmes de heroísmo, séries de ação e aventura, tenho que dizer que fiquei realmente impactada com toda a pesquisa feita pela autora para falar sobre os sonhos vívidos. E fui criando uma série de identificações com aquela história de multiverso em sonho que, de tão real, acordamos na certeza de que experenciamos aquela cena. 

Estamos inundados de informações sobre multiverso e tempos cíclicos, que não andam em uma estrutura linear, mas em sobreposições ou num eterno retorno ao mesmo tempo – talvez por influência de Nietzsche, usamos sua frase clássica sem nenhum pudor nas nossas criações. O último filme do Dr. Estranho sobre multiverso trouxe o sonho vívido como um espelho da nossa realidade alternativa. Apesar do filme não ter seguido um rumo que me deixasse com vontade de assistir outra vez, gostei da abordagem. 

Eu tenho sonhos vívidos. Você também deve ter, tenho certeza. Se tem pesquisa na área é porque o evento ocorre com frequência em mais de um lugar. Meus sonhos vêm de tempos em tempos, sempre com uma tragédia se anunciando, sendo minha própria morte a mais recorrente. Tenho inclusive a data, que me foi dita por um professor numa noite muito real. Guardei e trabalho para que não se confirme, tenho muito para realizar antes do dia chegar. 

Por falar nisso, Saramago propõe em um de seus livros que a morte nos avise com oito dias de antecedência da sua chegada. Esse seria o tempo necessário para que uma pessoa faça seu testamento, acerte a vida e pague seus impostos. Paulinho Moska pergunta o que você faria se soubesse que só te resta um dia, e tem várias ideias interessantes a respeito. No livro de Saramago, é a morte que vem te buscar; na música, é o fim do mundo anunciado, mas ambos tiveram pensamentos semelhantes sobre como nos comportaríamos se tivéssemos a data em nossas mãos. Enquanto Moska canta “andava pelado na chuva, corria no meio da rua, entrava de roupa no mar, trepava sem camisinha…”, Saramago prevê orgias que merecem entrar para a história. 

Ainda sobre os sonhos vívidos, assisti a uma série coreana chamada Enquanto Você Dormia (não é o filme americano) na qual três personagens têm seus destinos cruzados literalmente num cruzamento durante um acidente de carro. A partir desse evento, passam a ter sonhos premonitórios uns com os outros. Uma das personagens principais da trama, que se torna um triângulo amoroso, é o que chamamos de vidente. Ela sonha com pessoas que nem mesmo conhece, e anota todos esses sonhos dotados de informações importantes, como data, hora e local, para tentar ajudar as possíveis vítimas. Para mim, o mais poético é que eles são escritos em pequenos post-its coloridos que ela adesiva na janela do quarto, criando um mosaico de futuros. Nessa história, outra vez, temos o sonho que anuncia a tragédia. Não há sonho vívido sobre casamentos, nascimentos felizes, promoções no trabalho, ganhar na loteria. O sonho vívido é a confirmação de que algo trágico está prestes a acontecer. 

Mas foi meu sonho vívido de outra noite que me fez querer falar sobre o assunto. Sou arquiteta e urbanista, e sonhei que estava com minha família em uma mansão muito elegante, num banquete à beira da piscina. Estávamos ali a convite de uma família de políticos, cuja mulher era candidata a um cargo que não me vem à lembrança. Quando o almoço foi servido pela anfitriã e me levantei para lavar as mãos no banheiro que atendia aquele local, consigo lembrar com nitidez de detalhes da pia entalhada em mármore branco nacional, pois nunca vi uma parecida. Ou estive lá no meu multiverso, ou minha criatividade anda trabalhando até quando durmo. 

Saindo do banheiro passei para conhecer a cozinha, a porta dava acesso direto à piscina. Ela era enorme, um pouco decadente, e eu estava avaliando o quanto de reforma teríamos que fazer. Honestamente, não sei se estava ali como arquiteta contratada pela família ou como compradora. Acho mesmo que era a segunda opção, estava avaliando se deveria comprá-la e quanto gastaria para reformar. E então, quando me aproximei do bufê para me servir, um rapaz saído da piscina me fala: “Serve meu prato.” Não entendi de pronto, mas lá estava ele, bastante arrogante, me dando uma ordem. Olhei em volta, eu era a única não-branca naquela festa. Informei a ele que não trabalhava ali e acordei com o ódio de quem havia sofrido na pele o preconceito por ser diferente. 

Aqui chegamos ao ponto em que você me diz, “Ufa, ainda bem que foi só um pesadelo!”. Foi mesmo? Naquele multiverso, mergulhada em meu mundo onírico, eu sofri de novo uma violência que permeia a minha vida. Quantas vezes já fui confundida com a atendente da loja, a garçonete, a secretária, ou babá dos meus próprios filhos? Para algumas pessoas não é possível que eu ocupe um cargo tão alto sendo eu quem sou, tendo eu a minha cor ou os meus cabelos, traços da minha origem étnica. Então me olham atribuindo outras funções que elas julgam mais condizentes com a minha aparência. Não tenho nada contra nenhuma dessas profissões, prezo por cada uma delas, mas há olhos que me julgam, me veem como a moça que só serve para servir. Está aí no racismo estrutural: pretos servem, ponto final. O resto é história. Então, nessa noite do sonho vívido em que fui vítima de preconceito racial, acordei com um ódio que não cabia no meu peito. Pressão arterial subindo a troco de nada, uma revolta crescente inundando meu corpo como naquele filme A Coisa, de 1985. 

Sou parda, foi assim que me identificaram na minha certidão de nascimento no cartório, e é como o IBGE me enquadra no Censo, pois me mantenho declarando o que foi escrito naquele documento. O primeiro recenseamento no Brasil ocorreu em 1872 e usou dados visíveis, como a cor da pele, para identificar as pessoas entre brancas, caboclas, pretas e pardas, sendo pretas e pardas as pessoas escravizadas ou livres alforriadas. No censo seguinte, pardo foi substituído por mestiço, mas só durou um censo assim. Até 1990 os indígenas eram classificados como pardos, pois todo o sistema de informação era baseado em cor. Com a inclusão dos indígenas, passou-se a falar em raça ou cor. Agora temos 5 grandes classificações: branco, preto, pardo, amarelo ou indígena. 

O sistema de raças foi criado no século XV, mas foi com a teria evolucionista das espécies de Darwin e sua crescente deturpação que evoluíram estudos psicológicos, antropológicos e sociais que inundaram nossa ciência de preconceito. No Brasil, conforme o livro do IBGE de 2013, “o preconceito racial de marca (traços) não exclui completamente, mas desabona suas vítimas. Portar os traços do grupo discriminado constitui inferioridade, e faz com que os sujeitos ao preconceito sejam sistematicamente preteridos em relação aos demais. Todavia, a posse de outras características positivamente valoradas, como educação, poder político, projeção social e posse de riquezas, podem compensar, ao menos parcialmente, as marcas”. Aqui, fica evidente que o preconceito de cor no Brasil anda de mãos dadas com o preconceito social. 

Nunca me senti parda. Sempre preferi preta, pessoa preta, nascida de mãe preta e pai desconhecido. Parda para mim é a cor do papel. É clichê, eu sei, mas desde criança me sinto assim, como se alguém olhasse para todas as escalas de marrom do pantone e classificasse tudo com a simplicidade de quem não vê arte na vida. Conheci faz algum tempo uma artista chamada Angelica Dass, fotógrafa brasileira criadora do projeto Humanæ, que consiste na fotografia de pessoas de diferentes cores e etnias identificadas pelo seu correspondente pantone. É um estudo sociológico, antirracista e educativo, que busca mostrar quão múltipla e diversa é nossa identidade de cor, e como todas são belas. 

Quando meu filho mais novo voltou da escola dizendo que precisava usar o lápis “cor de pele” e pegou um lápis nitidamente rosado, perguntei se aquela era a cor da minha pele. A resposta era óbvia, por isso perguntei, e ele me respondeu que foi como a tia ensinou. Não sou rosada, meu tom é de marrom bronze, do tipo que brilha ao sol. É um tom lindíssimo de cor numa paleta com tantas variações. Segundo a Encycolorpedia, venho do laranja, numa escala RGB composta por 80.39% vermelho, 49.8% verde e 19.61% azul, e estou relacionada às cores ocre, cobre, chocolate e dourado escuro. Dessa mistura nasceu uma menina com características de metal nobre que não se refletem só na pele: preciso da firmeza do bronze no meu dia a dia. 

Por que as escolas ainda ensinam para as crianças que cor de pele é rosa pálido? Por que a indústria da moda chama de nude o rosa pálido? Nude para mim são tons de mostarda e alguns tons de cáqui, que uso com parcimônia. Para você que me lê agora, pode ser um tom de chocolate intenso, de café com leite, ou de pérola. Quando criança, eu ouvia que tinha cor de burro quando foge ou de peido engarrafado. Hum, não são descrições muito bonitas para a autoestima de uma menina e eu não entendia muito bem o que significava, sempre associava aos tons de cinza das fumaças ou do pelo do animal, mas sabia que não podia ser bom. Pode ser divertido para quem fala, mas é sempre duro para quem ouve.  

No livro da Dorinda Hafner, ela cita que um dia foi a uma liquidação numa famosa loja em Londres e havia promoção de calcinhas “cor da pele”. A vendedora indicou o caminho e ela não as encontrava. A vendedora a acompanhou e as duas se divertiram juntas, um pouco envergonhadas, por entenderem que a cor da pele das peças era clara demais para a pele da compradora. Nenhum tom de rosa salmão seria cor da pele para uma mulher negra. 

Voltando ao meu sonho vívido, naquele ato experenciado relembrei várias situações reais que vivi e que prefiro não relatar, porque, correndo o risco de me repetir, sou hipertensa, e quando algo me causa raiva, minha pressão arterial sobe e a única a sofrer as consequências sou eu. Aliás, li num estudo da Unicamp que pessoas negras sofrem mais com hipertensão arterial do que pessoas brancas, talvez por causas genéticas, talvez por conta da situação socioeconômica, visto que ainda somos o grupo menos favorecido. Segundo Drauzio Varela, as causas ainda podem ter raiz no tráfico de pessoas no período escravagista: sobreviviam ao trajeto nos navios aqueles que continham maiores índices de sódio no organismo, e essa característica foi passada ao longo das gerações.  

O que a arte me mostra sobre esses acontecimentos, desde a falha na Matrix de Neo até as múltiplas vidas de Evelyn Wang em Todo lugar ao mesmo tempo, é que o nosso poder para mudar o futuro reside no agora. Em perceber naquilo que parece apenas um sonho, uma experiência vívida traumática de algo que não aconteceu, que ainda temos tempo para mudar a realidade. Seja escrevendo esta crônica para uma revista, participando de debates nas universidades e nas câmaras municipais, participando das associações de moradores, buscando a informação e a formação de qualidade, ensinando outros caminhos, aprendendo com quem já trilhou, elegendo outros representantes para o governo que estejam mais afeitos à realidade que desejamos construir. Os livros e filmes de distopias, assim como os sonhos vívidos, estão aí para nos mostrar que se não houver mudança nosso caminho pode ser pior – e será. 


REFERÊNCIAS:

Hafner, Dorinda. Sabores da África: Receitas Deliciosas e Histórias Apimentadas da minha vida. Editora Selo Negro, São Paulo: 2000. P. 135-137 

Grayson, Devin. Doutor Estranho – Sina dos sonhos (Marvel) eBook Kindle. Editora Novo Século: 2016 

Saramago, José. As intermitências da morte. Companhia das Letras: 2005. 

IBGE. Org. Petruccelli e Saboia. Estudos e Análises. Informação Demográfica e Socioeconômica nº 2. Características étnico-raciais da população. Classificações e Identidades. 2013. Ministério do Planejamento, orçamento e gestão. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv63405.pdf 

Jornal da Unicamp. Hipertensão é mais persistente entre negros, aponta estudo. 2017. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2017/07/13/hipertensao-e-mais-persistente-entre-negros-aponta-estudo 

Teste da cor bronze. Disponível em: https://encycolorpedia.pt/cd7f32#:~:text=A%20cor%20bronze%2C%20com%20o,%25%20satura%C3%A7%C3%A3o%20e%2050%25%20intensidade.  

Uol. Drauzio Varella. Por que a hipertensão é mais comum em pessoas negras? Animação #23. Disponível em:  

Para conhecer Dorinda Hafner: https://www.dorindahafner.com/dorindahafner  

Projeto Humanae, Angélica Dass, disponível em: https://angelicadass.com/pt/apoio/poster/  

Série Enquanto você Dormia, 2017, 16 episódios, disponível em: 
https://www.viki.com/tv/33538c-while-you-were-sleeping?locale=pt  


Elaine Resende é Arquiteta e Urbanista, criadora do blog Sabático Literário, do canal do YT Lendo de Tudo um Pouco e integrante do Coletivo Escreviventes. A Professora da Lua é seu primeiro livro infantil, disponível em e-book pela Amazon. Tem textos publicados em revistas e antologias. Seu perfil no IG traz resenhas de livros, filmes e pensamentos. Tem 47 anos, é carioca e vive com o marido, dois filhos e seu cãozinho Byron. 

No Instagram: @cria.elaineresende 

No Youtube: Lendo de Tudo um Pouco 

Blog (fundadora): Sabático Literário 


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10 Comentários

  1. O texto da Elaine nos mostra várias facetas do racismo traduzidas por meio de um olhar sensível de quem sentiu/sente essas dores na própria pele. Parabéns pela lucidez e sensibilidade. Destaco, ainda, a bela ilustração de Céu Passos.

    • Obrigada, Lidi! O racismo permeia a vida, nem sempre de forma tão direta e expressa, mas está lá e causa a dor. Falar sobre essas dores expurga os fantasmas dos meus sonhos.

  2. Amei o texto. Nos leva para diferentes momentos, bailando e nos trazendo uma falsa sensação de liminaridade. E exatamente ali que estamos quando somos despertados pelo grito ancestral que é de todos

    • Pardos vivem no limbo da não-raça, Sônia, muito bem colocada tua fala. A opção racial vem por meio da família e da ancestralidade, mas muitas vezes a sociedade grita algo diferente, enviesando o olhar. Trazer essa discussão nos ajuda a fortalecer o espírito.

  3. Ana Márcia Diógenes

    Super interessante e complexa a leitura. Do sonho ao ensino distorcido e racista sobre cor da pele, fica a reflexão de que o futuro se muda hoje, com debate sobre o que se pensa posto.

    • Ana, exatamente! Temos que trazer para o debate essas questões com urgência, sensibilizar cada vez mais pessoas e, com isso, alcançar a devida reparação ao nosso povo. Obrigada pela leitura!

  4. Que espetáculo de texto. Fui me identificando em vários momentos. Obrigada, Elaine, por nos trazer essa reflexão tão preciosa e necessária.

  5. Texto muito bem escrito com reflexões importantes para combatermos o racismo. Parabéns pela postagem.

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