Um domingo para juntar os cacos

7 de novembro de 2022

 

Cotegipe, 1957. Como de costume, o casal Sebastião e Maria Nunes acabara de receber a visita de Mariana, Palmira e da pequena Nair, minha futura mãe, com seus 14 anos de idade. Sobre a mesa da sala, xícaras, pratos e utensílios mexidos, usados no café há pouco tomado pelas visitas. Na sala, algo estava diferente. O cachorro de gesso que decorava o ambiente lá não se encontrava mais. De tanto admirá-lo nas inúmeras visitas já realizadas àquela casa, nas entregas das encomendas de ovos, queijos e doces do sítio Buraco Fundo, Mariana acabara de recebê-lo de presente do amigo aposentado da Central do Brasil. Junto com a irmã e a sobrinha-neta-afilhada, voltava pra casa feliz da vida com aquela dádiva nas mãos, atravessando a pacata rua de Cotegipe. Esse arraial, que se formou no final do século XIX, em função da construção de uma estação ferroviária cujo nome homenageava o Barão de Cotegipe, àquela época, contava com um número de casas muito menor do que as poucas que lá existem hoje.  

Em se tratando de um local que abrigava uma estação ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil, que, nos tempos do Império, chamava-se Estrada de Ferro D. Pedro II, ali se ouviam apenas os burburinhos de pessoas e mercadorias que lá chegavam e de lá saíam diariamente. Símbolo de modernidade e meio de comunicação direta e eficiente com a então capital do Brasil, Rio de Janeiro, onde Mariana vivera sua efêmera vida de casada no início dos anos 1920, a passagem do trem por aquelas terras revolucionou, sem exageros, a vida e o comportamento daquela povoação. 

O cachorro, voltemos a ele, seguia sua cuidadosa travessia até o Buraco Fundo, nas mãos de sua veneradora. Aquele objeto inanimado talvez significasse para Mariana mais do que a simples representação dos exemplares de carne osso que viviam aos seus cuidados no sítio da família. Quando mais nova, Mariana tivera um cachorro brutalmente assassinado a tiro de espingarda por um transeunte que, passando pela estrada que margeava a porteira da propriedade, irritava-se com os insistentes latidos do animal, que, com seu instinto territorialista, ia ao seu encontro na estrada para defender a propriedade contra um suposto invasor. Tal acontecimento parece ter marcado a vida de Mariana. É o que nos conta minha mãe, Nair, a sobrinha que dela cuidou na velhice e se tornou a legítima herdeira daquelas terras duramente conquistadas por seus bisavôs portugueses, Serafim Cardoso e Patrocínia de Jesus. Terra comprada em 1910 e com escritura lavrada pelo tabelião-poeta ou poeta-tabelião Belmiro Braga, o mesmo que, na virada do século XIX para o XX, morou em Cotegipe, onde mantinha uma venda próxima à estação e conheceu um poeta cearense que o projetou na imprensa nacional, tornando-o famoso com suas quadras, uma das quais especialmente dedicada ao Príncipe, seu cachorro de estimação, que assim dizia: “Se entre amigos encontrei cachorros, entre cachorros encontrei-te, amigo”. Imortalizado em todo Brasil, já em 1910, por esses singelos e graciosos versos que agradavam os amantes dos cães, Belmiro não podia imaginar que, ao lavrar aquela escritura, sacramentava, ao mesmo tempo, um pedaço de chão que permaneceria por mais de cem anos nas mãos da família de Serafim e Patrocínia. Um pedaço de chão que serviu, e ainda serve, de abrigo para os cães desamparados que vagam pela estrada, abandonados à própria sorte. 

Mariana, porém, não se dava por satisfeita com os quadrúpedes de carne e osso que habitavam seu quintal. Queria embelezar sua singela sala com aquela peça de gesso, tal como se permitia admirá-la na residência do amigo Sebastião. E assim o fez. Colocou-a na mesa, em destaque, para que todos a vissem ao adentrar a casa. 

Logo Mariana lhe deu um nome: Perry! Tempos depois, cansada do monótono cinza que encobria o cãozinho, chamou a irmã, Palmira, e a sobrinha, Nair, para algumas alegres e soltas pinceladas vermelhas sobre sua pelagem, salpicando-a de manchas por todas as partes. Foi desse jeito que Perry atravessou o tempo e a mim se apresentou, na mesma sala assoalhada da casa que até hoje me habita. 

Não só de dengos e afagos viveu Perry. Sua vida teve lá suas glórias e tragédias: caiu e quebrou por pelo menos duas vezes. Na primeira, fraturou as duas pernas dianteiras. O cirurgião que o recuperou foi meu pai. O procedimento? Aplicação do bom e velho Durepox

Passam-se os anos… E Perry sofre outra fratura. Dessa vez, muito mais séria. Perry se espatifou literalmente, partindo-se ao meio e com o traseiro aos cacos. De coração partido tal como Perry, minha irmã recolheu os cacos espalhados pelo chão e os depositou em um saco plástico, onde, durante vários anos, permaneceu praticamente esquecido em cima do guarda-roupa, a espera de renascer das cinzas, ou melhor, dos cacos. 

*** 

30 de outubro de 2022, domingo, segundo turno das eleições presidenciais. Tensa disputa entre Lula e Bolsonaro. Democracia brasileira em frangalhos, após quatro anos sob a barbárie e os obscurantismos do desgoverno de Jair Messias Bolsonaro. O pesadelo da reeleição deste candidato me assombrava. Aquele domingo prometia ser o mais longo de todos os tempos. Não sabia como abstrair os pensamentos e a tensa expectativa pelo resultado do pleito. Sentia-me emocionalmente aos cacos. Isso mesmo: aos cacos… E, por falar nisso, onde está o Perry? Por que não desenterrá-lo de cima do guarda-roupa? Cacos espalhados em cima da mesa, era chegada a hora de me distrair com aquele quebra-cabeça. A cada caco colado, uma hora se passava. Eis que chega o início da noite, e já conseguia vislumbrar um simpático cãozinho quase íntegro e recomposto, apesar das inevitáveis marcas das emendas visíveis a olho nu. Na TV, alguns por cento de urnas já começavam a ser apuradas. Ansiedade apertava ainda mais. Focava novamente em Perry. Um retoque aqui e outro ali, o bichano estava pronto para receber uma generosa camada de verniz para fortalecer a carcaça. Pincelada pra lá, pincelada pra cá, urnas apuradas no Norte, no Sudeste, no Nordeste… Última pincelada, uma lufada de esperança: eu já podia ver Perry brilhando como novo. Na TV, William Bonner com o semblante restaurado por um sorriso jovial. Lula, com quase dois por cento de diferença, já podia ser considerado o candidato eleito democraticamente pelo povo brasileiro. Perry, restaurado, assim como eu, já não lembrava aquele montinho de cacos de outrora. Já do inimigo de Lula não sei o que dizer… Apenas me lembrava insistentemente dos versinhos do velho e bom poeta Belmiro Braga: “Pela estrada da vida subi morros e desci ladeiras e, afinal, te digo: se entre amigos encontrei cachorros, entre cachorros encontrei-te, amigo!” Com todo respeito, é claro, ao mais digno e fiel amigo do ser humano. 

Perry, agora, está de volta aos braços de sua legítima herdeira, minha mãe, agora também sorridente pela vitória de Lula, que tem pela frente a grandiosa e desafiadora missão de colar os cacos deixados pela destruição bolsonarista. É certo que, tal como Perry, o novo presidente precisará de muita cautela para não ser arremessado novamente da estante. Mas o fato é que a esperança do renascimento nos enche de energia e alma outra vez. 


Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG. Dedica-se a pesquisas relativas ao campo da história social da cultura/literatura, sociabilidades, trajetórias, memórias e acervos arquivístico e bibliográfico do Museu Mariano Procópio. Escritor colaborador e membro do Conselho Editorial da revista Trama Bodoque: Arte, Cultura e Criatividade


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Um comentário

  1. Um artigo maravilhoso, sensível, poético só poderia vir de um escritor igualmente sensível e poético.

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