O exótico e o erótico: um diálogo sobre a transgeneridade

INTRODUÇÃO 

Não é possível uma escrita de qualquer natureza que, realizada por mãos humanas, não traga consigo indícios de uma autoria. Essa autoria, por sua vez, se concretiza pelo fato de que a escrita não emerge do vácuo, mas de uma conjuntura discursiva e social na qual a pessoa escritora emite seu discurso. Desse modo, o que é dito e quem o diz estão intrinsecamente ligados. Escrevo isso rompendo propositalmente algumas regras do gênero textual, já que o que objetivo realizar é uma (trans)reflexão. E eu própria me insiro aqui como uma pessoa trans, cuja vivência não se distancia do processo de pesquisa. Ao contrário, são os pormenores do mundo como episteme os que me direcionam para o rumo que tomo.  

Em 2021, publiquei um artigo junto ao Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica cujo título era O Fetiche do Corpo Trans. Não sem que o esperasse, as críticas sobre meu pensamento foram bastante emblemáticas. Na mesma medida, pude ver também que as primeiras se baseavam quase completamente em um sentimento pessoal e afetivo em relação aos acordos sociais ali subjetivamente violados (por mim) ao tratar de tais temas.  

Não são raros os relatos semelhantes vindos dos meus pares na escrita e na pesquisa. Por isso, no presente artigo, tratarei da relação sociocultural estabelecida no imaginário acerca das pessoas trans. Objetivo questionar determinadas verdades estabelecidas no seio do patriarcado e desestabilizar alguns estereótipos fundados na misoginia.  

1.O GÊNERO NO MUNDO OCIDENTAL 

Judith Butler (2014), em seu artigo Regulações de Gênero assume que: 

Dizer que gênero é uma norma não é exatamente o mesmo que dizer que existem visões normativas de feminilidade e masculinidade, mesmo que tais visões normativas claramente existam. Gênero não é exatamente o que alguém “é” nem é precisamente o que alguém “tem”. Gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero assume. Supor que gênero sempre e exclusivamente significa as matrizes “masculino” e “feminina” é perder de vista o ponto crítico de que essa produção coerente e binária é contingente, que ela teve um custo, e que as permutações de gênero que não se encaixam nesse binarismo são tanto parte do gênero quanto seu exemplo mais normativo. 

Em outras palavras, podemos tomar que o gênero, diferentemente do que é reiterado nos discursos mais conservadores, não é algo inerente ao sujeito. Antes, é uma construção socialmente compreensível.  

No entanto, quando nos detemos sobre as expectativas sociais que forjam a noção de gênero enquanto performance de um ser no mundo, nos deparamos com um segundo problema: a construção do sujeito no mundo.  

Nesse sentido o binário de gênero se constitui numa relação oposicional, ou seja, em formato de identidade e alteridade. De acordo com Nadja Hermann (2014, p. 479), a formação de binários oposicionais é uma herança metafísica ocidental, onde a dualidade se constitui entre o eu (identidade) e o outro (alteridade) – sendo este último tudo aquilo que foge do ideal, que ultrapassa o limite da identidade e chega ao estranho. Traduzindo esse conceito para construção binária do gênero, homem e mulher se encontram em posições representadas anatomicamente de maneira estável e socialmente delimitadas em papéis masculinos e papéis femininos. Ser homem implica em não ser mulher, em rejeitar todo e qualquer marcador identitário inscrito no universo feminino (DOS REIS e PINHO, 2016, p. 11)  

Ou seja, construção identitária dos gêneros e seus respectivos papéis é realizada de modo oposicionista, e não complementar, tal que há uma relação de disparidade de direitos, deveres e privilégios reservados a cada indivíduo segundo o grupo no qual se insere. Isso é estruturado mediante pactos sociais bastante estabelecidos e ratificados por atos de fala como: coisa de homem; mulherzinha; viadagem; traveco; coisa de menina etc.  

2.O FETICHISMO E A SEXUALIDADE 

O fetiche está culturalmente associado à pluralidade de práticas, corpos e locais vistos como proibidos ao ato sexual. Dessa maneira, são proeminentes as fantasias emergentes no mundo contemporâneo e endossadas pela força das industrias pornográficas. Relações inter-raciais (que dialogam perigosamente com o racismo estrutural), alusões à pedofilia, atos sexuais em lugares públicos, frottage, exibicionismo…entre outros são alguns exemplos das práticas mais buscadas nos sites voltados a esse conteúdo.  

É, portanto, necessário dizer que isso é um mecanismo de duas faces. Por um lado, tais práticas emergem de uma conjuntura social na qual a sexualidade é vivenciada de distintas maneiras –e quase sempre sob uma égide heteronormativa cristã-. Por outro, é mister percebermos que a construção da sexualidade adolescente (assinalada pelos ideais acima mencionados) é influenciadas pela indústria porn

Essa mesma indústria, entrementes, opera com grande visibilidade em produções nas quais são explorados os corpos de sujeitos transgêneros, cuja posição em tela é a de objeto do prazer de um sujeito. Majoritariamente, esse sujeito é homem e cis. Isso reafirma a estética de uma masculinidade autopensada para a dominação, inclusive a nível sexual.  

A partir dessa ideia, o erotismo consumado no ato sexual é semiotizado como uma reencenação dos papeis de gênero, cuja premissa que assim os divide é baseada na submissão do feminino. Assim, o corpo trans encontra um lugar de grande interesse pelo público masculino, sobretudo os corpos divididos de modo binário: homem trans ou mulher trans. Isso porque ambos os estatutos apresentam uma forma desestabilizante dos estigmas próprios de cada performance; especialmente em termos fisiológicos e em relação aos papeis sociais delus esperados.   

Em outras palavras, o interesse sexual do público masculino cis pelos corpos trans parece derivar de uma curiosidade em relação à visão de um “homem com vagina” e uma “mulher com pênis” tanto pelo aspecto físico que tais corpos encenam socialmente quanto pelo fato de que, à vista dos olhares conservadores, a vivência trans não torna um corpo biologicamente pertencente a um sexo como socialmente entendido dentro do gênero oposto ao que se associa aquela forma biológica. Ou seja, se do homem cis é esperada a agressividade e a força –e isso representa uma série de atos de erotização- da mulher trans é esperada sensibilidade e fraqueza: o que se interpreta não como propriamente feminino, mas como uma redução da masculinidade embotada e submissa do “homem” travestido de mulher.  

Evidentemente, essa relação é calcada na desumanização do corpo transgênero, cuja individualidade é reduzida a um objeto do prazer, um receptáculo da agressividade sexual do homem cis. Esse cenário, pois, é reiteradamente exposto e explorado no mundo da pornografia ainda sobre um outro viés justaposto à presente ordem: o tabu.  

Culturalmente, o mundo ocidental se baseia em binômios: bem e mal; céu e inferno; santo e pecador; homem e mulher. A partir daí,  os lugares reservado a cada núcleo são sacramente vigiados pelos “panótipos da moral”. No entanto, um corpo trans contesta, pela sua própria existência, o sentido apriorístico dessas normas compartilhadas. Portanto, semelhantes indivíduos são compreendidos no mundo social como “imundos”, “marcados”, “mutilados” e “pecadores”. Destarte, as características componentes da individualidade dos corpos disruptivos são entendidas como “contaminantes” da suposta “pureza natural” dos corpos cis.  

Portanto, a relação sexual com um corpo trans representa um lugar de proibição, cuja prática pode ser realizada, mas não com afetividade. O corpo pode ser livremente acessado, mas nunca tal relação pode ser publicizada. Enfim, a existência de indivíduos em tal posição é despersonalizada e reduzida às características que os constituem como sujeitos trans, sem considerar qualquer outro elemento subjacente.  

3.A MASCULINIDADE DOMINANTE 

Como assinala Silva (2000):  

Até o século XVIII, não era possível encontrar um modelo de sexualidade humana conforme entendemos hoje. Foucault (1986) vai ressaltar que o próprio termo sexualidade é um termo surgido no século XIX, portanto pertencente às sociedades modernas e pós-modernas. 

Desse modo, o mesmo autor destaca que: 

O modelo de perfeição estava representado na anatomia masculina, onde a regra fálica5, distinguia perfeitamente o domínio de superioridade e inferioridade masculina e feminina respectivamente. Concebida como um homem invertido e inferior, a mulher será um sujeito menos desenvolvido na escala da perfeição metafísica. 

Isso implica um outro grande problema a ser confrontado socialmente: a égide dominante da masculinidade.  

Com efeito, é preciso termos claro que a influência da masculinidade no modus pensandi do mundo em que essa reflexão se insere está muito além de dizermos apenas que os homens detêm o monopólio do poder. Trata-se de percebermos que todo o imaginário ocidental é concebido com base nos trabalhos masculinos. Todo o modo como o mundo religioso, político, administrativo, cultural e social foi pensado a partir de estruturas fálicas de poder. Não em vão, os liames de tal teia social foram posicionados de acordo com os interesses particulares desse grupo específico. Como consequência, o pensamento dos sujeitos que emergem de tal contexto, no labor de se (des)construírem, precisam, antes de mais nada, desvincularem-se dos primeiros pressupostos sobre os quais esses se alicerçaram.  

O pensar, como apontam, Barbosa e Zolin-Vesz (2020), está diretamente relacionado com a língua e a língua portuguesa, na qual escrevo e na qual pensamos, é de natureza binária. Portanto, o próprio sistema linguístico condiciona um modo de se conceber o mundo e nele nos posicionarmos. Assim sendo, o esforço de romper com tais estruturas esbarra no conjunto de regras organizacionais que o concebeu e do qual ele não se desvencilha. Ou seja, não há como dissociar o pensamento da língua, mas, uma vez que a língua é limitada por suas próprias estruturas, o pensar também o é.  

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS 

No presente artigo, discuti a posição das pessoas trans (de um modo bastante genérico) na sociedade ocidental, com enfoque especial para o Brasil contemporâneo, onde se inserem as presentes reflexões.  

Apresentei alguns elementos que elaboram e sustentam os ideais de gêneros binários com base no referencial teórico adotado, ao mesmo tempo em que debati a maneira como a divisão de papeis sociais foi estruturada, segundo uma lógica de oposição, e não de complementação.  

Ao mesmo tempo, também objetivei elencar alguns pontos de reflexão acerca do papel da indústria pornográfica na ratificação e manutenção dos lugares sociais através da semiotização do ato sexual como uma performance de subjugação e dominação de corpos de diversas naturezas pelos corpos masculinos.  

À guisa de conclusão, apresento também uma última reflexão: em que medida o pensamento como tal, na sua expressão esforço para romper com as estruturas falo-antropológicas que o condicionam em nossa sociedade, de fato logra separar-se da estrutura primeira que o condicionou?  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

BARBOSA, J. J. dos S. & ZOLIN-VESZ, F. O DISPOSITIVO PEDAGÓGICO DAS REVISTAS CONTIGO! E ROLLING STONE EM RELAÇÃO A PABLLO VITTAR. Revista Margens Interdisciplinar. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/revistamargens/article/view/9645. Acesso em: 30 de set. de 2022.  

BUTLER, J.. Regulações de Gênero. Cad. Pagu (42)  Jan-Jun 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/Tp6y8yyyGcpfdbzYmrc4cZs/?lang=pt. Acesso em 28 de set. de 2022.  

DOS REIS, N.; PINHO, R. GÊNEROS NÃO-BINÁRIOS: IDENTIDADES, EXPRESSÕES E EDUCAÇÃO. Reflexão e Ação, v. 24, n. 1, p. 7-25, 28 abr. 2016. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/7045. Acesso em 28 de set. de 2022.  

SILVA, S. G. da. Masculinidade na história: a construção cultural da diferença entre os sexos. Psicol. cienc. prof. 20 (3) • Set 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/7ftQZzgJTGcvJmzWDv7gD5d/?lang=pt. Acesso em: 29 de set. de 2022.


Ariel Von Ocker é escritora, psicanalista e poliglota. Autora com sete livros publicados, atua desenvolvendo pesquisas na área da psicanálise, literatura sob perspectivas historiográficas e análise do discurso. 

 


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