para Rodrigo
Caminham, pois a mãe não volta. Mais velha, a garota compreende, simplesmente. Caminham, pois. Rio abaixo, quase feito apenas uma intuição, vem-lhe, em torpor de prestes a lembrar um sonho, mas sem: a mãe contando — dentes tão abertos como se duplicando as vogais — dos largos onde o rio desemboca, panos inflados, cascos com gente dentro, e mais gentes por toda parte, no logo antes e no depois das beiras. Então pra lá se vão, enquanto ela tenta imaginar como será esse destino em que não se cabe, no quando chegarem, enquanto no aqui da estrada esgravatada de sol, tenta também acalmar o irmão: para que se acalme ela mesma de ter medo.
O dia parece de uma temperatura muito particular. Como certo outro, o pai à frente, sem dar a mão nem medir passo, vez em quando só virando e repetindo, num tom que a ela soava mais desafio que convite: Vamos. Chegam à primeira fileira da plantação. A última, do lado inverso. Avançam de volta, rumo à casa e à mãe vigiando da sombra: inspecionando. Foi insistência dela vir. Esmiúça as mudas com afinco, tenta lembrar das palavras dele meses antes, no plantio, que nome foi nesse ângulo donde se avista o velho ingazeiro?
Porque o amor da mãe sempre fora uma dádiva. O dele não: terra a ser conquistada. O dela, ponto de partida e eterno retorno, regaço, mas o dele: vácuo a sugar o/em movimento, rumo e desrumo, comichão que aviva, fidiputa, desgraça de querer justo o não ter, por quê? Porquê.
Erra mais do que acerta aquele ror de indagações a um tempo monocórdio e seco, meio farpejante: E esse aqui, é pé de quê? Remói-se de lembrar mais é o cheiro do pai, em vez das sílabas que agora ele reinvoca: Mamoeiro, lagartixa, ma-mo-ei-ro. Tem vezes que seu jeito em dizer aquele apelido, lagartixa, é um cafuné rarefeito, mas cafuné. Bem diferente dessa feita, quando a quentura da tarde se entranhou nela estralando espinhos, como agora na estrada. Lá, nos quandos da memória, voltaram, pra sombra da casa e da barriga da mãe crescendo. Aqui: seguem. Abaixo.
Muitos depois, desceu água da mãe, e veio o irmão. Chorava um tantão, no começo. Depois diminuiu. Assim que viu, primeiro não viu não: diferença. Menor, claro. Enrugado. Mas era um igual, parecia. Quase. Só que o pai. Foi nele que enxergou: pegando o pequeno em abraços de uma redondez líquida, saliva de mãos, ombros, caixa torácica. Cochichando Lagartixiiinha, de um jeito meio visguento mesmo, molejante — cafuné suculento, toda vez. Aquele espichado um rio, a cada pronunciação. E pra ela, não por quê? Naquela época, buscava era curso acima, cavoucando margens atrás da nascente.
Foi debaixo do som da chuva: ela e a mãe compartilhando lavar o mais novo, audindo os vários ritmos que a bacia ecoava no esfrega com a água. Acalantou baixinho: lagartixiinha, estendendo também, o quanto conseguia, em seu parco acúmulo de ser, o segundo i. Como se a repetição pudesse-lhe explicitar algo que escapava. A mãe perguntou, em sua maneira tão nada confrontativa, como se perguntar fosse apenas um outro formato de não dizer: Você entende? Fez que sim com a cabeça, embora. Mudou de ideia num breve, entanto: Mãe — eu não entendo. Ele é como teu pai. Por isso. Entende? Ao jeito dela, talvez, que é sempre ao próprio jeito que se compreende: então isso. Assim. Carecia ser como ele. Pois pronto: haveria de. Nem teve tempo de praticar, porém. Ainda matutava os comos, quando: na mesma noite, uivo do vento assoviando desde cedo, o irmão pela primeira vez andou firme, poucos passos, verdade, mas sem nenhum cambaleio, até o peito da mãe, e o peito secou, justo naquele instante. Chorou. Ardido pra diabo, porque nem leite pra calar, nem o colo do pai: picado de cobra a duas léguas, o rosto hirto mirando o sal derramado sobre a mancha de óleo pra candeia, tudo caído, espalhado em volta das duas cavidades negras no tornozelo esquerdo.
Hoje, o irmão não chora. Por enquanto, ela pensa, vendo que em alguns momentos ele se atrapalha de andar: ora tropeça, ora bambeia, arranha-se nos espinhos da beirada do caminho, arrasta os pés, atrasa o ritmo. Na primeira noite sem a mãe, em casa ainda, chorou o esperado, até dormir. Mas agora ela questiona, por dentro, se ele não está a se acriançar, pra trás, revertido de correr cronológico, feito a seu modo, a seu tempo, subisse contracorrente, enquanto descem rumo ao mar. Preste muita atenção, ela se diz.
Torna a visajar a concretude do que a mãe, contando, desenhava no ar: Barcos, filha, muitos barcos, como aquele na curva do rio, lembra? Só que lá muitos mais, maiores, e a derrama fresca no oceano, feito bacia de água salgada que do outro lado não tem borda, é pra sempre, e a mãe nem desenhava mais, enfeitiçada em renarrar a própria lembrança. Às vezes estendia os braços e balançava as mãos pra frente, indicando o sem fim de sal. Ambas sempre souberam, dentro de si, sem nem mesmo precisarem conversar a respeito, isso que cientistas só viriam a saber muito depois — ao menos com certeza (enquanto elas, sempre): memória e imaginação não são sequer irmãs, são a mesma. E a diferença, de uma ser pra trás e a outra pra diante, é apenas uma arbitrariedade, que aprendemos nunca nos lembramos quando, mas podemos abolir: só querer.
Talvez, pr´além disso, não soubessem muito na vida, a depender do juízo da palavra muito, mas esta clareza é já um horizonte. Avista, então, sobrepondo-se ao chão de raízes secas que esquadrinha à frente em nitidez exata, aquelas preciosidades de família reveladas em voz limpa sob a lamparina: o rio se despejando na bacia sem fim, velas espraiadas encasulando mastros da altura da carnaúba maior na margem trás da casa. E gente, muitas gentes. Lá conseguiriam o que comer. Vou cuidar de você, irmão — ela disse com firmeza, ao pegar na mão dele pra partirem, antes de clarear. Mas cuidar é uma imensidão.
A mãe nunca precisou dizer: Cuida dele. Usava sempre outras palavras, duas também: Teu irmão. Na porta de casa, com a foice na mão, uma olhadela pra mim e outra pra ele, nessa ordem, e depois um aceno afirmativo de cabeça: Teu irmão. Ela arrancando as couves enquanto eu o impedia de meter à boca tudo a seu alcance. Quando o vendaval fez desordem tamanha, da mãe ter que subir no telhado. Meu medo. A olhadela e: Teu irmão. Ele que haveria de se parecer com a gente, pois.
Também daquela vez: bem antes do sol subir. Só que mesmo já muito depois de tudo azul escuro escuro, apesar da lua, nem sinal da mãe voltar. O choro do pequeno: ela cuidou. Dormiu engasgada, acordou de estômago embrulhado. Esperou mais um dia: nada. O irmão olhava pra todos os lados, balbuciando: Mamã, ué, mamã. Na terceira manhã, o pegou pela mão, e com a trouxa de comida cruzada aos ombros magros, sentindo-se um dos barcos da boca da mãe, estradou pra leste. Foram até onde, antes, tinham chegado com a mãe: no corpo caído do pai. E nem sinal dela, agora.
Sentei-me numa pedra, abraçada a ele. Meu irmão. O céu uma bacia d’água sem bordas. O que sabia daquela estrada? Óleo, sal e morte. Mesmo que talvez, alguém que houvesse conhecido o pai, soubesse da mãe, melhor não. Um medo, muito. Mirou o pano ao peito: vela. Voltamos. Pelas horas que a terra chupava, inchava o vazio dos gestos que ela não alcançava: cuidar da plantação, como? Pescar, menos ainda. Então? Antes que não sobrasse nada, enrolou as últimas folhas, cozinhou o último aipim, arrumou nova trouxa, e puseram-se a descer o rio.
A tarde já quase finda. Deitar onde, quando a luz deitar? Por enquanto caminham: à frente, abaixo, junto às águas. Quanto mais longe forem, mais perto chegam, antes do não saber que é dormir. De trás de arbustos altos, afloram dos espinhos, subitamente: primeiro duas, e logo: mais quatro e mais uma que surge do meio das outras, hipnótica como se dançasse, pisando lustrosas sandálias de couro, mas é como tivesse os pés nus, a garota pensa, tanto parece irmanada ao chão, aos galhos, à luz se acobreando às suas costas. Param, todas, e o irmão.
Será que já? Essas muitas. Talvez não assim quanto esperasse, mas enfim: um princípio de chegança. Mais do que jamais vira, ora. Alivia-se, botando como um ovo dentro de si: uma felicidade, que ainda nem reconhece, mas já distende suas têmporas, panturrilhas, o pescoço em riste. Brota saliva de volta à boca. Afinal, sim, convence-se, porque muitas, e todas elas. Uma dádiva. Abre sorriso:
— Eu sou
Mas a voz corta a voz, do miolo dela no miolo das demais:
— Não importa. Importa ele. Ele é macho. Tu não é nada.
Pode também o rio morrer à praia, ou afogado à beira, depois de caminhar lonjuras de poeira e sol? É preciso pensar rápido. Logo elas, todas, se fazendo como o pai, qual o sentido? Oferta o que tem, na esperança de, pois os pés cansados não conseguem — a mais ali, na ponta da faca de fala e cerco — mapear outro combate àquele contrassenso queimando-lhe o rosto.
— Posso ser como vocês. Sou. Posso ser.
— E pra quê? Boca a mais, não nos serve. Pelo contrário.
— E por que então não matam entre si? — cospe sem pensar, petulante, a morte nos lábios desde.
A mulher sorri, capciosa.
— Somos irmãs.
— Me façam irmã. Ou filha. Escrava até, posso ser.
— Não carece. Nem queremos. Tu é outra, e será sempre. — Es pnem entende que da alturaa morte nos laquele contrassenso queimando-lhe o rosto.dade que ainda nem entende que da alturaEle fará em nós filhos de nossa carne.
— É só uma criança!
— Crianças não andam de próprias pernas. Se arrastam, cambaleiam. Depois, são já macho ou fêmea. Não há crianças aqui: alguém se arrasta? Ninguém. Pois.
Teu irmão. No entanto, agora é outra a mirada sobre si. Outras. Teu irmão. Como o pai. Elas: como a mãe? Não. Nem podia ser como ele, nem como ela, nem como elas. Como ser?
— Tu pode ir. Vai chegar onde quer. Segue. Ele fica. Não cria medo, menina. Vamos cuidar dele.
Teu irmão. E tu?
— E eu…?
— Tu agora é livre. Cuidado. A liberdade é perigosa. Mas vai.
Livre. Rumo à foz. Onde um sonho lembrado a desabrochar sem bordas, todo velas e risco, desenhando o poente e o nascente, depois. Caminha, agora só: como sempre.
* Conto integrante do livro Nunca estivemos no Kansas (Ed. Patuá, 2022).
Thássio Ferreira: poeta e ficcionista, autor de Nunca estivemos no Kansas (2022, contos); agora (depois) (2019), Itinerários (2018) e (DES)NU(DO) (2016), de poesia. Escrevo a coluna Alguma coisa em mim que eu não entendo, na Revista Vício Velho e já escrevi aqui e ali no Jornal Rascunho, Escamandro, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Revista Ponto (SESI-SP), Aboio, Jornal Relevo, Revista Brasileira da Academia Brasileira de Letras e InComunidade (Portugal). Prêmios Cidade de Manaus 2020, Off-Flip 2019, Editora UFPR 2018 e finalista do Prêmio Sesc 2017. Já colhi rabanetes que eu mesmo plantei. thassioescritor@gmail.com.
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