A flor vista de cima 

A flor lhe pareceu esplêndida. Era rosada, tenra; suas pétalas alongadas, cheias de comissuras, a faziam pensar em tentáculos de algum cefalópode ou de outra obscura criatura marinha. Era uma flor selvagem, imprópria para jardins que se pretendem amenos. Era uma flor de carne. 

Aproximou-se dela com pudor; a flor sabia fazer-se respeitar. Tinha cheiro de sal, de pântanos; de humores e de canais entrelaçados de limo. Permanecia inerte e vigilante, como um crustáceo suscetível e obstinado. Pensou que não era prudente aproximar-se demais, mas a flor exercia sobre ela um fascínio impossível de dominar. 

Repassou brevemente seu repertório ginasial acerca das flores carnívoras: são frequentemente bissexuais, de hábitos furtivos; aproveitam-se de colorações e odores sugestivos para atrair e subjugar suas presas. O gênero Drosera possui tricomas glandulares semelhantes a tentáculos que secretam substâncias pegajosas e aderentes; uma vez capturada, a presa é digerida, devorada e destituída de toda a sua natureza proteica. 

Ainda assim, decidiu tocá-la. 

Primeiro alcançou de leve a ponta de uma pétala, com a ponta do dedo. A flor pulsou: estava viva. Depois escorregou pétala adentro (agora com a polpa do dedo), escalando de fora para dentro a parede da pétala: a flor a acolheu. Deslizou o dedo sobre a estrutura tentacular e atravessada de ventosas, contrapondo à textura fissurada e úmida a estabilidade lisa de suas digitais. As pétalas se agitaram comprazidas, aprovando o toque; distenderam-se, afrouxaram-se e permitiram que de seus poros vazasse um sumo discreto e viscoso. Supôs ter ouvido um gemido, quase imperceptível porém muito agudo; pareceu-lhe um gemido de aprovação. A flor lhe pareceu menos que ameaçadora; um animal quase doméstico que não repudia carícias. 

Viu então o miolo, que antes estivera quase oculto: um bulbo de carne de repente dilatado, olho arregalado no centro da flor. Sentiu um arrepio; percebeu a própria carne agitada, trêmula e inquieta: à flor da pele. Sentiu que um perigo a rondava, e que era imprescindível tocar aquele centro. 

Escorregou o dedo, cuidadosamente, rumo ao grelo agigantado no centro da fenda; a ânfora a tragava para seu interior, sedenta. A sede, porém, não se podia dizer de onde provinha: se da carne feita de flor ou se da flor da própria carne. 

E, quando finalmente atingiu o miolo, o cerne inchado da flor, cumpriu-se aquilo que não podia ser evitado, o destino último da flor carnal: as pétalas se retesaram, se comprimiram e estalaram como chicotes dentados; a flor contraiu bruscamente as mandíbulas, e ela soube que era muito tarde. 

O que veio a sentir não era dor: era um prazer insuportável. 

Com o coração ainda acelerado, observou a flor que digeria calmamente o seu dedo decepado. A flor robusta, saciada, em seu estado pleno de flor e de carne. 

Com as mãos pegajosas de sangue, segurou a flor pela base, que era coberta de pelos escuros e densos, e encaixou-a novamente no rombo aberto em sua pélvis. A flor se acomodou como um molusco no interior de sua concha e adormeceu, permanecendo imóvel entre as cerdas dos corais hirsutos na superfície negra. 

A mulher estancou o sangue e suspirou, resignada. Não se sai impune após tocar a flor. 


Marcela Fassy nasceu em Belo Horizonte, em 1984, e atualmente mora em Diamantina/MG. É escritora, historiadora (UFMG), especialista em Artes Visuais (SENAC-MG), Mestre em Ciências Humanas (UFVJM) e trabalha como Educadora no Museu do Diamante (Ibram/MinC). É autora de dois livros de contos, Oniros (Urutau, 2022) e Animais Cinzentos (Viseu, 2021). Tem contos publicados em antologias diversas, entre elas a do Selo Off Flip 2023 e a Antologia Zarpadas (Abarca Editorial, 2022). 


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2 Comentários

  1. Gostaria de parabenizar a autora pela prosa poética tão bem construída. Muito bom!

  2. Deliciosa e sedutora prosa, adorei!!!

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