Azul Maciço

Era meio dia e eu ainda não tinha saído de casa. Tomei meio copo d’água e saí corrida. Fechei o portão com um baque, tropecei na calçada do vizinho. Andei pela rua de paralelepípedos com meu ímpeto habitual. Chegar. Não observar as plantas com que as pessoas, cuidadosamente, ornamentavam seus jardins. Nem pensar em dar bons dias a estranhos. Não dar bola para nenhum animal de rua. Chegar. Apenas. 

Naquele dia em particular, movia-me obstinada tal qual um ser flutuante. Deslizava pelas estreitas calçadas vencendo obstáculos. Lixo, automóveis, bancas de jogo do bicho. Eu precisava chegar. Contrariando minha lógica anti-distrações, parei para vislumbrar o céu. Um azul maciço, certeiro, me encarou de volta. Tive que retomar o fôlego. Senti que iria morrer.  Há muito criara a teoria de que morreria num dia lindo. Eu não perceberia que o dia estava lindo, simplesmente morreria e meu último pensamento seria a respeito da beleza inexorável que fulminava meus olhos.  

Após recobrar meu ritmo natural de absorção de ar, verifiquei se alguém havia reparado meu ‘susto’ com a magnificência daquele céu. Ninguém na rua. Me aliviei por um instante, mas me ocorreu a minha condição de mulher. Solidão não significa segurança.  

A sensação de que iria morrer voltou e me acompanhou até chegar em uma avenida principal, com o trânsito mais que caótico, enervante. Como não era capaz de me afastar do assombro que tive com o céu, permanecia tensa. Na primeira faixa de pedestres que surgiu, pus os pés com firmeza. Logo, o semáforo à cima da minha cabeça ficou verde, instruindo os pilotos e motoristas a prosseguirem. Independente da minha sólida e notável presença, assim o fizeram e ali, no asfalto esburacado e cheio de chorume, quase morri. Vi carros, motos e caminhões passarem pelos meus lados, desviando, sem parar. Pensei que, possivelmente, aquelas pessoas tivessem tanta pressa quanto eu, ou mais. Quando pude me mexer, o sinal já estava novamente vermelho.  

Não sei se foi por medo, superstição ou falta de bom senso, mas naquele calor que formava miragens acima do solo, decidi que tomaria uma cerveja. Eu tinha tempo, e sabia. Minha pressa nunca existiu por motivo de atraso, mas sim por me habituar a sempre chegar adiantada aos meus compromissos. Com certeza, não haveria dificuldade em encontrar por ali, numa cidade onde só existem as estações ‘quente’ e ‘um pouco menos quente’, algum estabelecimento de venda de bebidas reestabelecedoras de juízo, como considero uma cerveja gelada.  

Estava errada, andara por talvez um quarto de hora até me deparar com o tal bar. Entrei, consultei o cardápio e refleti se deveria me sentar ou seguir meu instinto pontual e beber em movimento. Notei como aquele tempo seco, aquele estresse urbano e o céu azul desgastaram meu corpo. Sentei. Pedi uma cerveja e a temperatura estava a contento. Tudo daria certo naquele dia, dizia-me ela. 

Fora a minha presença, o local apenas contava com a de um casal que conversava do outro lado do cômodo, ele virado em minha direção, ela de costas para mim. A mandíbula dele ia de encontro ao seu peito, dura, enquanto falava. Seus olhos demonstravam o quanto tentava retrair exaltação. Seu punho esquerdo estava disposto, com veias aparentes, sobre a mesa bamba de metal. Ela agitava ambas as mãos no ar, em suposto desespero, enquanto respondia. Tive medo novamente, mas segui bebericando meu líquido frio e reconfortante. Calculei em quanto tempo conseguiria chegar ao meu destino partindo daquele bar. Era hora de partir. Pedi a conta, um cigarro e gomas de mascar. Ao guardar minhas coisas na mochila e verificar se o isqueiro ali jazia, ouvi um estrondo que me bagunçou os sentidos.  O homem estava de pé e a mulher no chão. Seu cabelo castanho havia se convertido em vermelho. E pegajoso. Mas ele não soltava o gatilho. Os funcionários pulavam para trás do balcão principal. Eu permaneci parada por alguns segundos até compreender que poderia ser a próxima. Provavelmente, seria. Saí correndo.  Corri não sei por quanto tempo, não sei onde querendo chegar, não sei se lembrando o porquê. O bairro me pareceu um intrincado labirinto. Tremia e não respirava enquanto ligava para a polícia. Perturbada, cria que o assassino me procurava. Não sei quanto tempo a polícia demorou a chegar ao local, se localizou o feminicida ou se mais alguém foi morto.  

Determinada, embora exausta, disse a mim mesma que não faltaria ao meu compromisso. As pessoas à espera nada tinham a ver com meus empecilhos na estrada. Não manteria minha fama de professora que sempre chega na sala antes do sinal tocar, mas me ausentar, não iria. Continuei meu caminho a pé, apesar de tantas intempéries. Esperar um ônibus me fatigaria mais o ânimo. Andando, fumaria um merecido cigarro. Foi quando avistei uma frondosa, pois não podada há anos, amendoeira.  

Foi o primeiro momento neste malogrado dia em que senti vontade de chorar. Lembrei de quando corria por prazer, na infância. O barro vermelho do quintal de minha avó me vinha à cabeça. A bicicleta roxa, os inúmeros chinelos pocados na praça, o dia em que fraturei meu antebraço esquerdo. Tudo se convertia em nostalgia melancólica. Resolvi escalar a árvore, que se impunha contra aquele céu ainda tão azul.  

Não sei como, mas morri. Me encontraram em uma posição suficientemente confortável para se arrumar entre galhos. A bolsa no colo, aberta, o cigarro que não conheceu fogo. Morri. Em cima do ‘pé-de-aumenda’. Morri num dia lindo. Qualquer um poderia ter morrido num dia azul daquele. 


 

Helenna da Silva Castro 

Nascida no extremo-sul da Bahia, Helenna Castro é Comunicadora Popular, graduada em Comunicação Social- Jornalismo, escritora e diagramadora. Integra o coletivo de comunicação e arte Brasil Vermelho. É cofundadora da Assembleia Popular de Ilhéus, veículo de comunicação da classe trabalhadora. 


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