O verão de 85

Com uma trajetória premiada, autora gaúcha prepara três novos livros e organiza nova coletânea; escritora evidencia as temáticas do corpo e da sexualidade das mulheres em suas obras, enxergando a arte como expressão e luta, em sintonia com os horrores dos tempos atuais.

Se a escritora Irka Barrios (@irkabarrios) pudesse resumir suas personagens em uma frase, responderia que são sempre mulheres em estado de fuga. Abordando corpo e sexualidade como temas centrais de suas obras, a escritora se consolida na literatura latinoamericana escrita por mulheres que se segmentam nos estilos que bebem do insólito, do terror e do horror

“Nós, mulheres, precisamos nos manter vigilantes. Todos os dias. Criar e nos manter vigilantes, criticar e nos manter vigilantes. A arte está aí como expressão e luta, em sintonia com os horrores de nossos tempos”, frisa Irka, que já venceu os Prêmios Brasil em Prosa (Amazon/Jornal O Globo, 2015) e Odisseia da Literatura Fantástica (2022) e foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020 com seu romance de estreia, “Lauren” (2019, 228 pág.), publicado pela Caos & Letras. 

Atualmente, Irka prepara mais dois romances e um livro de contos, todos em negociação com editoras. Também organiza a coletânea “In Corpa”, financiada coletivamente e com previsão de lançamento pela editora O Grifo para maio.

Já na obra mais recente da escritora, a “Júpiter, Marte, Saturno” (104 pág.), lançada em 2022 pela editora Uboro Lopes, Irka apresenta 14 narrativas que transitam no contexto “do fantástico, do invertido, do maravilhoso, do sobrenatural”, como define a escritora mineira Adriane Garcia, que assina a orelha. O livro —que inclui o conto “O coelho branco” (leia na íntegra), vencedor do Prêmio Brasil em Prosa – Amazon, em 2015 — também conta com textos de Morgana Kretzmann e mariam pessah para a quarta capa. 

“Júpiter, Marte, Saturno é um passaporte de viagem para um mundo expandido, um portal que só a imaginação pode abrir e, ao mesmo tempo, traz personagens reais, em situações fincadas na sociedade, cultura e política reconhecidas como nossas”, para a autora, o romance foi mais desafiador para escrever porque desejava que a obra tivesse elementos do terror, que a história se passasse no Brasil atual e que tratasse de questões sexuais de uma adolescente. “Foi a minha terceira escrita de romance, e a que resultou num livro com condições de ser publicado”, revela. “Já os contos são de diversas épocas, eu tentei unir os que melhor conversavam. O romance, em minha criação, veio primeiro, o conto depois. Mas o conto, a forma com que ele se manifesta, é mais natural em mim.” 

Confira um trecho do conto “O verão de 85

O caso era que havia, dentro do terreno de um próspero fazendeiro, um açude onde proliferaram peixes carnívoros. Ninguém sabia a origem e nenhum biólogo se interessou a estudar o fenômeno. Ou se interessou e não houve recurso da universidade. Naqueles anos não existiam muitas universidades, as informações eram precárias, os boatos corriam, assumindo um tom de verdade difícil de contestar. Uns diziam que eram criaturas escuras, de deslizantes corpos alongados e guelras pegajosas que se abriam ao largo, enormes, feito asas. Outros diziam que os peixes possuíam duas ou três camadas de dentes afiadíssimos e maxilares que se fechavam num encaixe perfeito, para nunca mais abrir. Alguns defendiam a teoria que os bichos nada mais eram que descendentes de um réptil pré-histórico que sobreviveu aos milênios evolutivos e encontrou as condições necessárias naquela água lodosa. E havia, ainda, os mais entusiastas, bairristas ao extremo, que insistiam que os bichos eram originários de uma cruza de peixe com cobra, uma espécie ainda não catalogada, exclusiva do açude do seu Darlan. Mas todos, absolutamente todos concordavam quando o assunto era o ataque das criaturas. Um desavisado que resolvesse pescar ou molhar os pés ali jamais sobrevivia. Os animais destroçavam o corpo em segundos. A coisa era tão feia que os parentes optavam por realizar os enterros com caixão lacrado.  

 Brincávamos naquelas terras, mas nunca nos aproximávamos do açude. Algumas vezes a curiosidade nos tomava de assalto e jogávamos pedras, a partir de uma distância bem calculada. Espiávamos de longe a movimentação da superfície, cada um com seu palpite sobre a forma e o tamanho das criaturas. Alimentavam-se do quê? Dos bois e cavalos que paravam para beber água? De pássaros, lagartos? Ou tinham reservas no corpo, como as cobras, que se alimentam e demoram meses digerindo a presa?   

Era dezembro, início do verão de 85, quando nossa curiosidade tomou as proporções mais elevadas. Alguém contou para outro alguém que os peixes haviam destroçado uma nova vítima e que desta vez não havia restado um pedaço sequer. Devoraram tudo. Não poderíamos perder mais tempo, precisávamos ver, investigar, descobrir. Organizamos um grupo, juntamos pacotes de salgadinhos, duas garrafas térmicas com limonada, seis sanduíches de presunto e queijo, e montamos guarda nas proximidades do açude. Roubamos uma fita e medimos dez metros de distância a partir da margem. Sabe-se lá, talvez por conta de algum relato mais preciso, achávamos que os peixes conseguiam saltar essa distância durante o dia. Combinamos que a cada duas horas um novo olheiro deveria se apresentar no posto de observação. Mas o fascínio era tanto que ninguém queria arredar o pé da guarita improvisada. Só aceitávamos desmontar acampamento e ir para casa quando anoitecia. Vai que os monstros criassem patas e saíssem para se alimentar durante a noite? 

Após quinze dias de observações frustradas, peles ardidas e rostos descascados pela onipresença do sol de dezembro, uma tempestade mudou o rumo de nossos trabalhos. Perdemos um dia inteiro de investigação e quando tentamos retornar ao local, o terreno todo havia se modificado. Um enorme pântano se formara, impedindo-nos de caminhar na direção do açude. Resignados, subíamos no portão da casa do seu Darlan e espiávamos a vasta extensão de terras alagadas.  


Irka Barrios (@irkabarrios)

é Doutoranda em Escrita Criativa. Venceu os Prêmios Brasil em Prosa (Amazon/Jornal O Globo, 2015) e Odisseia da Literatura Fantástica (2022). Seu romance “Lauren” foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020. Escreve para a Revista Ventanas, Ministra Oficinas na GOG, atua no Coletivo Mulherio das Letras e é mediadora do Clube de Leitura Escuro Medo. Organizou as coletâneas “O Novo Horror”, “Vigílias”, “Tudo soma zero” e “In Corpa” 


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Um comentário

  1. Assustadoramente cativante seu texto. E ao mesmo tempo prosaico, como se saído fosse da imaginação fértil de um adolescente. Muito bom mesmo. Valeu a dica de leitura desse e dos demais contos.

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