Pela manhã recebeu a visita de seus netos que há muito não via. Entre uma conversa e outra, entre um delírio e outro, Diva contemplava a juventude em seus netos e rememorava com eles os dias de glória vividos nos palcos de um teatro antigo de sua cidade natal. Diva cantava e encantava seu público. Nos anos cinquenta ela reinava entre as cantoras de rádio. Conheceu Armando, seu marido, agora em descanso eterno, em uma de suas apresentações. Ele prometeu mundos e fundos, sucesso, dinheiro e uma vida bem mais abastada. Ela, tomada de amor, encantou-se e entregou-se a esse homem que a abandonou em sua terceira gravidez, por conta de “outros rabos de saias”, assim ela dizia. Mas que voltava todas as vezes que o dinheiro era escasso. Diva, aos poucos, foi perdendo espaço, oportunidades, pois precisava cuidar dos filhos pequenos e num piscar de olhos, a bela cantora tornou-se lavadeira para manter a casa e as despesas. Perdeu a glória, que foi logo esquecida, perdeu a honra e a vida nos palcos. Perdeu Armando e as ilusões, passou a viver somente para os filhos que a deixaram ali, só, em uma casa de repouso. Hoje, nem cantar consegue mais. E por um momento, de mãos dadas com seu neto mais velho, revelou-se: 

Fui criança, fui jovem. Hoje receio esquecer meu nome. Minhas pernas fracas não sustentam mais meu esqueleto frágil e disforme. As lembranças para mim são flashes que se embaralham ao dormir. Tenho medo de sonhar. Tenho medo da escuridão quando fecho os olhos. Entenda: há mil razões para partir e um milhão para ficar. Já não tenho paladar, só o amargo do beijo que um dia dei. Minhas rugas contam por si minha história e minhas mãos antes ágeis não me obedecem mais. Meus olhos azuis embranqueceram-se de cataratas, talvez, por saudades do Iguaçu. Meus cabelos negros amarelaram-se, folhas velhas de um livro esquecido no tempo. Já nem sei quantas vezes contei esta história. Entenda: meus passos débeis já não querem regressar. Minha voz rouca teima em se calar. Meus olhos lacrimejam ácido. Quantas vezes quis rezar e não pude! Quantas vezes, ao gritar, emudeci! Meu coração parece pular de tanta vida, mas meu sangue já não corre, caminha. E o ar parece azul quando o tenho para mim. Entenda: a saudade do que já foi é o único bem a partilhar. O futuro? Não importa, o presente é o único lugar, a solidão a única estrada e a poesia? Acabou. Entenda: é preciso despertar. 

Os olhos de Vinícius não escondiam sua tristeza diante das palavras agridoces de sua avó. Seu peito parecia se romper de tanto pranto. Quando, enfim, conseguiu se recompor, percebeu que Diva já não estava mais ali. 


Joseani Adalemar Netto 

natural de Santos Dumont, Minas Gerais. Formada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Educação Infantil, Especialista em Educação Contemporânea pelo IF-Sudeste, campus Santos Dumont e Mestre em Letras – ProfLetras UFJF. Leciona Língua Portuguesa e suas Literaturas na Rede Municipal e Particular de Santos Dumont. É membro efetivo da Sociedade Brasileira dos Poetas Adravianistas (SBPA), Coordenadora do Projeto de Leitura LeiturAMA-SD, membro atuante da Ação em Movimentos Artísticos de Santos Dumont (AMA-SD), fundadora e coordenadora da Academia Brasileira de Autores Aldravianistas Infantojuvenil – SD (ABRAAI-SD), membro correspondente da Academia Portuguesa de Ex-Libris (APEL). É contadora de histórias, palestra sobre Educação e Literatura, ministra oficinas e atividades culturais voltadas para o incentivo à leitura e à escrita tanto para estudantes quanto para a formação de professores na cidade de Santos Dumont e região. Tem seus textos publicados em antologias literárias como o Livro IV, V, VI, VII e VIII e IX das Aldravias; Antologia Juiz de Fora ao Luar; Antologia Múltiplas Palavras, UBT (JF), e-book Cronistas da Quarentena (2021), Livro foto-poema pela Lei Aldir Blanc. Possui capítulos em livros pedagógicos voltados para o Letramento Línguistico e Literário, artigos publicados em jornais e revistas voltados para a Educação. Já prefaciou livros e quarta capa para vários outros escritores e poetas. Trabalha como revisora linguística em várias publicações. É colaboradora externa no Projeto Propostas Pedagógicas para o Ensino de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental II e Ensino Médio, atuando como co-orientadora dos bolsistas de Letras na construção de sequências didáticas, do IF-Sudeste, campus Juiz de Fora e atua também no projeto de pesquisa Performances do Narrador, UFMG, com o olhar para as obras de Conceição Evaristo. Participa de forma atuante em oficinas, palestras, cursos, saraus e atividades afins. Possui certificados e medalhas de Mérito Cultural por sua atuação como fomentadora da cultura local e da região, oferecidas pela SBPA, Lesma Poesia, Rotaract, Interact, Câmara Municipal de Santos Dumont, dentre outros. 


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Um comentário

  1. Belíssimo minha doce amiga!!! Aliás, como tudo que você escreve!

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