Mari Marília 

Tenho no corpo batuques de coração e corre-corre de sangue, mas não reconheço em mim resto de vida. Sou vazia como este recipiente. Minha rotina fisiológica é fachada.  

Lembro, como se fosse hoje, o Zé falando: 

“Marília, não quero filhos.” 

Também dizia: 

“A oficina está cheia de carros. Vou faturar.” 

Já eu: 

“Fiz inscrição no curso de pintura.” 

Sem me olhar, comentava: 

“Vou assistir o jogo do Corinthians no estádio.” 

E eu: 

“Quero dar uma volta no mercado municipal pra comer o pão com mortadela.” 

Ele insistia: 

“Acho que o Léo vai comigo.” 

Nossa comunicação era sensacional. Nossos corpos juntos, divinos. Ao término da rotineira transa de cinco minutos, Zé dizia: 

“Nada de filhos.” 

Às vezes, eu soltava um “sim”. Outras, reagia: 

“Você viu que lindo o bebê da vizinha? Nasceu semana passada.” 

Nesse momento, ele já não estava mais comigo. A transa o enchia de fome. 

Pela manhã, em vez de dar bom-dia, perguntava se eu estava tomando o anticoncepcional. 

Não gosto de conversar logo cedo. Preciso de tempo para digerir o fato de que viverei mais um dia. 

Com a menstruação e a ansiedade a todo vapor, comia compulsivamente, o que me rendeu alguns quilinhos.  

Um dia Zé comentou: 

“Me matriculei na academia.” 

Não reagi. 

Eu sentia saudades de casa. Conferia o calendário, para ver quando visitaria minha família. Impossível. Tinha de concluir as leituras que a orientadora havia indicado. Além disso, a bolsa de pesquisa era uma miséria.  Ficava tão empolgada com os livros que lia. Contava a Zé as mudanças que geravam em mim. E ele, com os olhos na televisão.  

“Puta que pariu! Juiz ladrão!” 

Nem era o Corinthians que estava jogando.  

Assim se arrastavam os dias.  Eu precisava me reunir com minha orientadora. No caminho, senti um líquido escorrer pelas pernas. Uma dor nas costas me cortou, e minha vagina parecia explodir. Caí no chão e gritei.  No hospital, uma enfermeira disse: 

“A bolsa rompeu.” 

Bolsa? E meu anticoncepcional, servia para quê?!  

Foram oito horas de trabalho de parto. Médicos e enfermeiras ficaram em silêncio o tempo todo. Não ouvi choro. Só senti um jato de ar irradiando de minhas entranhas.  

Vi um dos médicos colocar algo dentro de uma caixinha. Chamaram alguém para analisar o que lá depositaram. Ouvi dizerem “mariposa”. 

Mariposa?! Eu estava exausta, sozinha, perplexa. Não conseguia racionalizar. Fechei os olhos e apaguei. 

Ao despertar, o médico despejou uma avalanche de palavras em mim: 

“Marília, você teve contrações e apresentou sinais de que estava em trabalho de parto. Não há bibliografia que explique o acontecido. Uma lagarta, Marília. Você gerou uma lagarta de mariposa.”  

Uma lagarta?! As enfermeiras estavam pálidas feito seda de inseto.   

“Seu celular estava descarregado. Quer que entremos em contato com alguém?” 

“Não precisa.” 

“Como o parto foi normal, você logo conseguirá se levantar. Pode pagar por um motorista de aplicativo?”  

Fiz que sim. 

“E a lagarta, onde está?” 

“Você quer ficar com ela?” 

“Sim, é minha.” 

O médico pediu para que eu tomasse cuidado. A lagarta era do tipo espinhosa. Queimava quem a tocasse. Peguei a caixa em que a depositaram e parti.  

No apartamento, Zé, sujo de graxa, sentado no sofá, olhava a tv. Não percebeu o meu estado, pálida, sem banho, frangalhada. Distraidamente perguntou: 

“Onde passou a noite?” 

“Encontrei uma amiga. Saímos pra tomar cerveja. Me chamou pra dormir na casa dela.” 

“O jornal só dá notícia ruim.” 

Não chegou a ouvir o fim da resposta.  

Coloquei a caixa na cômoda, tomei banho e deitei. Era impossível dormir. Peguei a lagarta e corri para a floricultura. Expliquei ao vendedor que queria cuidar de um “pet temporário” e pedi que me ajudasse a montar uma casinha. 

Ele pegou um recipiente fechado com furos pequenos espalhados na tampa. Forrou o fundo com papel toalha para depositar ali alguns gravetos. Colocou também algumas folhas frescas. Em seguida, orientou: 

“Você deve limpar todo dia. A lagarta come muito e faz bastante cocô. Vou te dar um borrifador. Espirre nas plantas e na lagarta. Se secar, é mal sinal.” 

“Como assim?” 

“Se secar, morre.” 

Fui para casa cuidar dela. Depois passei a evitar os diálogos desorientados que tinha com Zé. Também fugia de qualquer toque. Alegava estar ocupada com a tese. Ele não questionava. Os olhos soltos, por quase um mês, não foram capazes de identificar a nova moradora. 

Chamei-a Mari. Acho que cheguei a amá-la.  

Só que me esqueci do borrifador um dia. E Mari ressecou. Desesperada, abri o recipiente e a toquei. Que dor absurda irradiou pelo meu corpo! Antes de correr ao pronto-socorro, espirrei água nela e esperei que se movimentasse. Depois gritei: 

“Zé, me leva pro hospital.” 

Com raiva, desligou a tv, colocou os sapatos e pegou as chaves.  

“Zé, não estou aguentando de dor.” 

“Calma, já vamos.” 

Tiveram de me dar soro antilonômico. Permaneci em observação, para os médicos verificarem como eu reagiria. Fiquei bem.  

“Como você foi se queimar?” 

“Você não viu o recipiente com a Mari?” 

“Quem é Mari?” 

“Nossa filha.” 

“Quer que eu compre alguma coisa no caminho?” 

Ao chegar, corri para ver se ela estava bem. Tinha reagido. Estava úmida e vistosa. Após alguns dias, virou casulo. Passaram-se quinze dias até que ele rompesse, o tempo de confecção da mariposa fêmea. 

Mari ficou linda. Eu imaginava que apresentaria tons amarronzados, como os das mariposas que conheci. Mas não, tinha longas asas lilás e, nas traseiras, um tracejado roxo e duas bolas alaranjadas. 

Levei-a à praça Victor Civita, onde a deixei partir.  

Com o coração e o recipiente vazios, voltei para casa. 

Lá encontrei Zé deitado. Disse-lhe: 

“Nossa filha partiu.” 

Ao que ele respondeu: 

“Amanhã não vou trabalhar. Acho que peguei um resfriado.” 

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Ana Flávia Nejaim fez graduação em Letras, na Universidade de São Paulo, e mestrado, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (bolsista-Capes). Atualmente ministra aulas de Gramática e de Redação para alunos do Ensino Médio.  

@ana.nejaim 


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Um comentário

  1. Marcelo Oliveira

    A estrutura do conto é singular, o desencontro na harmonia da relação que é descrita pela autora é elevado ao nível do absurdo, o fruto advindo não podia ser.mais abstrato e surreal. É realmente uma viagem interessante com uma mensagem no mínimo intrigante. Acredito que haja inúmeras mensagens subliminares a ser desgustado nessa história.

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