Um corpo atravessado pelo encontro

Hoje é quinta. Mas o que me leva a escrever é algo que aconteceu na terça. Um encontro, eu poderia dizer. Um encontro com Clarice. Mas sobre esse encontro, nada posso escrever. Qualquer tentativa de nomeação escapa-me. Do encontro, guardo apenas a expressão de um corpo em movimento, frágil. Um corpo atravessado pelo encontro de algo muito sem nome. Talvez por isso, entre a terça e a quinta, um intervalo de silêncio.  

Enquanto escrevo, recordo uma frase que havia escrito no caderno. Procuro, mas não a encontro. Acabo me perdendo no trecho do diário de 2022 e confirmo a verdade de uma frase que Gabi me entregara há alguns dias: é mesmo real o contorno que o tempo nos concede.  

Quando leio o diário as lágrimas vêm com facilidade, pois sei o que aquelas palavras escritas falam. O mais importante está entre as linhas do caderno que preencho com uma língua que não é a minha, mas que parece me visitar em certos momentos como se eu a pudesse controlar.  

Recorro à musica porque é ela que me ajuda nessa linguagem que se encontra à margem. Sorrio ao escrever essa palavra e muitas imagens me ocorrem: a margem da estrada, a margem da folha, a margem do mar ________________ a margem da palavra.  

Lembro de outra frase de Gabi: “não foi o mar, mas seu movimento, que nos foi dado em herança”. 

O movimento! 

O movimento! Tenho vontade de repetir vinte sete vezes: o movimento! Eu que sou tão ausente de permanências. Eu tão passageira. Eu tão ____________ 

A música dá início a um ritmo mais intenso e tenho a necessidade de ir junto com ela. Nesse ritmo louco, dessa que me visita com tanta frequência. Mas dela, só fragmentos. Detenho-me nesses sinais de sua presença. Ela adora me convidar a um diálogo sem sujeito. Toda vez que escrevo ela aparece com seu caminhar musical. É na letra que ela surge como se desejasse que eu traçasse as linhas de sua história.  

Ela não tem nome. E creio que nunca terá.  

Não sei como retratá-la. Mas não recuo a essa espécie de aproximação. Parece-me que sua natureza é mesmo essa: evanescente. E me assombro com o surgimento dessa palavra porque sei que ela carrega o tempo. Um tempo da eternidade. Há milênios ela existe. Milênios. Nem sei contar esse número. E mesmo assim ela conversa comigo. Não fala nada. Mas sei o que ela me pede e é por isso que escrevo. É esse o convite que ela me faz. E sigo com ela, escrevendo o que não posso, o que não sei, o impossível. 

Talvez ela seja a nuvem animal do livro de Gabi. Há mesmo algo de animal nela, eu pressinto, como pressinto sua aproximação sempre que está por perto. Antes eram as extremidades que me avisavam através do medo que me acometia sua aparição. Hoje, não sei mais nada e isso de certa forma é um conforto pois aprendi com Clarice que “viver ultrapassa qualquer entendimento”.  

Dirijo-me a ela com essa falta de entendimento, buscando manter preservado todos os espaços entre as palavras. Me importam as linhas não escritas que se encontram na margem. Na margem da estrada que percorro sem saber para onde vou, na margem da folha que rabisco conhecendo o risco de não nomear, na margem do mar, preservando-me do afogamento ao mesmo tempo em que me deixo transbordar, na margem da palavra que, sei, jamais saberei pronunciar. 

Me aproximo do fim da página desse caderno que tem a mão da escrita estampado na capa. Não me aproximo de um fim, sei disso. Mas sei também que não posso continuar. Não agora, quando as lágrimas que caem ameaçam manchar a tinta da caneta com a qual escrevo. São muitas as linhas que se abrem para além daquelas que se encontram na folha pautada. E me espanto. Me espanto com tudo que carrego nesse corpo atravessado pelo encontro. E me espanto ainda mais ao reconhecer que o que pulsa mais intensamente, mais loucamente, mais devastadoramente, é o peso de um verbo que não sei conjugar. Aquele bem pequeno. Aquele do bordado. Aquele que beira o mar.  

(E talvez não seja coincidência que eu tenha saído do silêncio no dia de Iemanjá) 

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Fernanda Leal é mulher em trânsito, da psicanálise para as artes. Autora do livro “A tristeza comum da mãe: reflexões sobre o estado psíquico do pós-parto”, resultado da sua pesquisa do Doutorado em Família na Sociedade Contemporânea (Ucsal). Desde a pandemia, vive nesse movimento de passagem, se refazendo através da escrita e recentemente através das artes plásticas. Essa travessia veio a público com sua estreia na ficção, “Um nome para o silêncio”, publicado em 2022, pela Cas’a Edições. A escrita surgiu como uma necessidade, e o desenho como uma revelação que a mantém em movimento, imprimindo a língua no papel, com o ritmo que lhe é próprio e que leva um pedacinho do mar. 

@_fe_leal__ 


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