A rodoviária

Fazia tempo que eu não passava por lá. Antes, todo fim de semana, pegava ali o ônibus para ir ver a família. Talvez por isso, pela falta atual de costume, me pareceu ver mais pobres concentrados. E falo isso não porque eu tenha dinheiro, mas dava para sentir que eles não tinham nada. 

Uma velha e um senhor imploravam frente a um guichê, braços e bocas abertas, deviam ter perdido a passagem. Bem mais na frente um homem esquálido, com as roupas rasgadas, dormitava babando de olhos abertos no chão e outro, agitado como se tivesse acabado de usar crack, e movendo os braços pra frente e pra trás, passou me pedindo dinheiro pra uma passagem pro Rio, falando que tinha acabado de sair da prisão, ao que eu dei dois reais para ele. E as lanchonetes, com seus salgados em estufas, e os poucos atendentes com cara de que mais um final de semana se passaria no trabalho… 

Faltando quinze pra meia noite me aproximei do guichê, era a hora de comprar a passagem. O último pra Campinas, sim, saia meia noite, isso não tinha mudado; mas, por algum motivo, como nunca antes tinha acontecido, não tinha mais assentos… Eu ia ter que ficar até às 4 por lá, hora do próximo ônibus, até às 4 na amplidão daquele espaço… 

Estava com sono, o cansaço das minhas pernas queria me puxar para baixo, mas eu sabia que não ia dormir. Era muita informação para simplesmente dormir. Então, de súbito, por mais pouco condizente com a situação que fosse, me veio certo entusiasmo… Eu gostava do inesperado, aquilo que quebra a repetição dos dias. “Que outra vez eu ia passar a noite na rodoviária?” “Quantas coisas eu não podia ver nessas horas?” 

Me aproximei de um conjunto de banquinhos, banquinhos pretos que formavam um retângulo de frente a um banheiro. Neles muita gente estava recostada, alguns aparentando dormirem, outros, pelo visto, apenas fingindo que conseguiam. Esses últimos horários sempre deixam muitos órfãos, ou os expõem, pensava… 

“Ela sempre foi assim… teimosa…” - vinha uma voz mais caipira que a minha de uns banquinhos frente ao meu, e era o casal de velhos que, de mãos e bocas abertas, tinham implorado no guichê – “quantas vezes a gente não falou pra ela, não se mete com esse cara?” – falava a senhora, cabelo já grisalho e bem penteado, óculos de aros de madeira, um vestido creme de crente – “E agora ela quer casar a todo custo, o cara acabou de sair da cadeia, vai bater tanto nela que não vai sobrar nem cabelo, mas não adianta, ela fala que ama ele, que vai muda ele, que Jesus colocou isso como missão pra sua vida” E via que o senhor – robusto, cabelo grisalho e estilo militar, de expressões rudes mas ao mesmo tempo polido, e com uma camisa branca de botões – apenas concordava, com um sorriso de meio não quero pensar nisso agora, como se conversassem disso o dia todo. 

Do outro lado, a uns dez metros de mim, uma mulher insuportavelmente magra, moreninha, de uns quarenta ou cinquenta anos; talvez menos mas judiada pela vida… Seu cabelo seria considerado pelos outros “pixainha”, seus olhos eram pretos, redondos e fundos, marcas pequenas por todo o rosto estreito. E ao seu redor, trouxas, sacos, cobertas; e tudo esparramado, sobre seu colo, no assento do lado e no chão… 

Ela de tempos em tempos me olhava e na sua expressão não conseguia entrever o propósito. E uma hora me encarou, me encarou algo bruxa, e acabei virando o rosto… 

Ainda mais longe, perto do banheiro, em um assento solitário, uma mulher nem bonita nem feia, nem jovem nem velha, o cabelo pelo visto pintado de vermelho, extremamente penteado e todo gorduroso, quase como se tivesse passado gel (provavelmente algum xampu bem barato), cruzava e descruzava as pernas, me fitando quando a olhava. E na sua calça rosa choque bem grudada tinha em cada lado um rasgão, a carne aparecendo, atrativa e repulsiva, entre os vãos de tecido. Deve ser uma prostituta, pensei quando me olhou novamente. E mesmo sem que o quisesse pensei, podia matar meu tempo indo com ela pra um motel barato… 

Seria algo que eu nunca mais faria. Algo bem vulgar para quebrar a repetição dos dias. Mas aí veio a paranoia, nada ilógica: ela poderia ter alguma doença, a camisinha estourar e eu ser contaminado para sempre; ou, e nessas circunstâncias isso era sempre possível, ela podia nem ser mulher… 

Fiquei por um bom tempo olhando e desolhando, deixando possivelmente ela confusa se eu queria ou não queria, e o casal de velhos meio desconfiados, com um misto de curiosidade e reprovação. 

Parei de olhar. Virei novamente o rosto. A mulher quase esqueleto me encarava, e me vinha na cabeça, talvez também seja prostituta, vai ver há um nicho de prostitutas que atendem nas rodoviárias os passageiros perdidos, um mercado razoável. Mas algo sério no seu olhar me disse que não… 

Sendo como fosse, a curiosidade de saber o que significava seu olhar e a disponibilidade de tempo quase infinita não iam me deixar tranquilo. 

Em um impulso me levantei, dei uma pequena volta entre os banquinhos e as lanchonetes, e quando voltei me sentei bem perto de onde ela estava. Titubeei um pouco, mas pensei, é normal puxar assunto quando se tem tanto tempo pela frente… 

-Moça, o seu ônibus saia que horas? O meu era pra ter sido meia noite, mas por algum motivo já não tinha mais lugar. 

Ela demorou pra responder, eu devia ter sido invasivo e já ia me preparando para pedir mil desculpas. Não porque ela tinha me olhado estranho eu tinha direito de fazer perguntas. 

– Ônibus? Eu não perdi nenhum ônibus. 

-Desculpa… é que eu perdi o meu, aí achei que você também tivesse perdido… O ônibus que você está esperando, que horas vai sair? 

Outro silencio e meus pensamentos me recriminando, dessa vez por ter sido insistente. Talvez, aliás, ela só tivesse me encarado porque eu a encarei… 

-Não sei… Ainda não decidi pra onde eu vou. 

Fiquei um bom tempo sem saber o que falar. “Ainda não decidi pra onde eu vou…” Não era algo que se escute numa rodoviária… Já tinha ouvido muitos lançarem essa frase, mas em todas as vezes se relacionava ao futuro, à vida. 

E a minha falta de raciocínio, o meu não querer ver o óbvio, deve ter soado patético. 

– Chegou aqui por engano? Tipo se enganou de ônibus e não sabe como voltar? Se tiver sem dinheiro posso te ajudar com uns vinte reais. - e ao falar isso, sendo sincero, comecei a me arrepender, não tinha tanto pra ficar assim distribuindo… 

Ela demorou novamente, seus olhos bruxos dessa vez me fitando. 

– Não, só cheguei. Perdi outras coisas. Estou faz mais de uma semana aqui. 

Me veio um gigantesco sobressalto. Mais de uma semana, os dias e noites passando indiferentes lá fora, centenas de rostos diferentes ou iguais nesse canto de espera, o cheiro leve da comida das estufas, o banheiro e seu odor distante a mijo e desinfetante, as roupas e o suor se revezando e acumulando, banhos mendigados nas duchas por cinco reais, os pensamentos girando em sua cabeça quase nunca podendo libertar-se. 

– Uma semana… E para onde pensa ir? 

-Dá na mesma… Se eu pudesse voltar no tempo… eu não faria as coisas ruins que eu fiz… E poderia ter ficado no Ceará, na minha terrinha… De qualquer jeito, alguém vai morrer esta noite. 

-Como? 

-Alguém vai morrer esta noite – e sua voz parecia se virar para algum vulto, invisível, na sua frente. 

-Porque sim, eu sei que alguém vai morrer esta noite… 

E então se levantou, deixou todas as trouxas onde estavam e foi se afastando enquanto repetia um par de vezes, para si, aquela ladainha. 

Eu fiquei um bom tempo atônito, o medo, a pena e o espanto fermentando dentro de mim. Sentia coisas como uma vontade de detê-la pelo braço, de levá-la a um lugar mágico onde se concertassem as pessoas desgraçadas, “e, e se alguém for mesmo morrer? Não é melhor tentar evitar?”, e ao mesmo tempo pensamentos inconvenientes do tipo, “Quem ela acha que é? O Antônio Conselheiro?” 

Fiquei muito tempo assim até que por fim decidi me levantar e dar uma saída pra fora, respirar o ar fresco e tirar da cabeça a ideia ridícula de que a mulher realmente podia ser profeta ou, pior, que eu podia salvar sua vida ou a daquela pessoa que fosse morrer. 

Cruzei as lanchonetes, passei pela entrada do metrô (no Tietê a rodoviária se conecta com ele), no caminho sorrisos e ameaças que me imploravam por taxis, “Não quer um taxi meu jovem? Não me fala que vai com os capangas dos uber!” Passei falando que não tinha nada, que só estava dando voltas, desci as escadas rolantes e lá estava eu na cálida noite, entre os carros dos taxis que ficam quase em frente da escada, os sem teto jogados no chão sujo, e a avenida Cruzeiro do Sul quase sem movimento. 

Dei um par de passos, fui até uma ruazinha transversal à avenida, alguns estabelecimentos porcos abertos. 

Um senhor moreno estava de pé na saída de um hotel ou motel, seus olhos eram espertos e algo cansados; ao me ver um sorriso contraindo as marcas gordurosas do rosto. 

– Quanto sai a noite? 

– Sessenta por duas horas - e vendo que eu não replicava nem aceitava – Sabe, aqui vem toda hora casais e travecos, não posso reservar a noite pra ninguém. 

– Quatro horas quanto sairia? 

– Cento e quinze. - e vendo meu silencio de novo – Tá tudo caro estes tempos. E você nem imagina o quanto tem de traveco e puta no mundo. 

Não pude evitar de ficar irritado. Era muito dinheiro pra dormir por míseras horas em um pequeno quarto malcheiroso ao lado de pessoas transando e perturbando meus sonhos já escassos… 

Tentei me controlar. O homem não parecia ser de dinheiro e só estava enfim seguindo a corrente. Cobrar tudo o que se pode cobrar. Ganhar tudo o que se pode ganhar. 

-Obrigado, outra hora volto – e fui me afastando lentamente, e como um bobo fiquei naquela ruazinha indo de cá para lá e de lá para cá. 

Imaginei, não sei por que, a vida desses travecos que levariam seus clientes ao hotel; quais seriam seus pensamentos? Suas crises? Obviamente tinham muitas, todas as estatísticas pra isso apontavam, 600 mortes no Brasil nos últimos seis anos, umas cem mortes por ano, mas era difícil imaginar. E as prostitutas, como aquela de rosa choque e rasgões? (Supondo que fosse prostituta, claro…) Se alguma estivesse a ponto de se suicidar no que pensaria? Pois as pessoas sempre se matam por motivos muito diferentes. E os banqueiros suicidas na crise de 29? Pensariam mais no orgulho falido, no luxo perdido ou em quantas pessoas teriam jogado na rua? Como se poderia saber? E o homem ao meu lado, no chão, adormecido ou exausto, e coberto por uma coberta verde, azul e amarela, como ele contaria seus dias? Pois as pessoas sempre contam seus dias de forma diferente. Aquilo tudo era tremendamente triste. 

Uma comoção cavernosa, que não costumava sentir, preencheu todo o ambiente. 

Todos, enfim, chegariam ao fim do mês, dariam um terço do seu salário ao governo, o qual investiria em loterias, viúvas de militares e cartórios, outra grandíssima parte seria dada aos patrões, os quais tratariam todo funcionário como convicto fracassado, outra parcela ainda aos bancos, ávidos sempre por juros, e muitos ainda ofereceriam como sacrifício, junto com a alma, casas e carros aos pastores… 

E todos, sem exceção, receberiam uma educação miserável e um futuro feito de alimentos gordurosos e esperas por fins de semana de entusiasmo ou cansaço concentrados. O governo e as elites, igualmente ignorantes mas de um jeito camuflado, bombardeariam o país com propagandas de casais margarina, promessas de carnavais infinitos, jogadores de futebol que ganham mais do que gerações de famílias. Quando um daqueles não favorecidos, por acaso ou esforço, chegasse a algum topo, ele se sentiria tranquilo em também explorar os demais. E a rede MAR, como sempre, mostraria lixões limpos e cidades apenas com aeroportos, sem rodoviárias… 

Era muita crise em potência, e eu não podia fazer nada. Tentei acalmar os pensamentos, esperar que o mundo mostrasse seus lados luminosos, que as tragédias uma por uma se amenizassem. 

Numa lanchonete uns salgados com mais fritura que recheio pousavam solitários. Dois jovens magros e com roupas justas escolhiam uma música na jukebox, possivelmente horrível. E vi, eles estavam felizes, de uma felicidade sem máculas, a menina quase se abaixando de tanto de rir e o cara gritando algo pelo visto engraçado, seu boné quasequase caindo.  

Cruzei a ruazinha, fiquei de novo entre os taxis, a escada rolante em frente, e observei de perto os mendigos. Um deles, por uma brutal casualidade, assim como o outro que eu acabara de ver do outro lado, também estava enrolado em uma manta verde, azul e amarela.  

Subi a escada, voltei a passear entre as séries de assentos, aquelas pessoas dormitando ou com os olhos caídos mas abertos. E ao longe o mesmo homem esquálido babando com os olhos no chão; o viciado em crack gesticulando mais dinheiro a alguém. O vazio crescendo, não havia como deter o turbilhão de raiva, pena e a ansiedade em seu estado mais puro. 

            Me sentei no mesmo banquinho de antes. Mesmo não querendo os ouvi, o casal caipira continuava o mesmo assunto: “As coisas não são mais como antes, antes as pessoas se conheciam de verdade, na igreja, os pais um do outro… Já eles foi tudo no funk e ela já acha que é sua missão salvar ele… ” 

            Me virei para eles, a mulher de vestido creme dessa vez era a que ouvia as palavras escassas do marido, e o fazia como se estivesse a ouvir as palavras mais sábias do mundo. 

            “Na nossa época não tinha isso de drogas, homens que não se comportam como homens, pessoas que acham normal não se casar na igreja… O mundo era mais simples, mais certo.” 

            Já a mulher da profecia, a de olhos bruxos, não tinha voltado, tinha levado todas suas coisas e perambularia nessa espécie de sala de espera enquanto as semanas passavam. E a de rosa choque também brilhava por sua ausência. Apenas, recostados, vários rostos indefinidos. 

Fechei os meus olhos, fantasiei estar no meu quarto, o interior, sem essa profusão de sombras… Mas não consegui. 

Depois de um bom tempo em vão decidi molhar o rosto no banheiro, cagar e ao voltar tentar dormir pra valer em um daqueles banquinhos. Ainda tinha duas horas pela frente. 

Molhei meu rosto, a água deslizando sonolenta, meu rosto jovem mas cansado… 

Então foi quando, no boxe do banheiro, ao ter acabado de cagar, ouvi barulhos estranhos no mundo de fora… 

Batidas, vozes grossas se juntando, indistinguíveis, barulho de torneira. 

Achei que era um assalto, um assalto estranho num banheiro de rodoviária, depois um aviso de emergência, quem sabe um atentado. “E se a mulher de olhos bruxos tivesse razão??” 

– Desse jeito o terminal vai fecha, vai tudo acaba! 

– A gente tem que manda fecha esse lugar, é tudo uma vergonha. Essas coisas não deviam nem existir. 

Essas frases foram as mais distinguíveis, o resto pedaços de palavras e sons que não conseguia conectar, e uma pequena explosão ou batida, e os barulhos diminuindo, as vozes se afastando, uma porta que parecia se fechar, o ruído suave de água e logo o silencio. Tudo enquanto eu ficava encostado na privada, imóvel, esperando que não me ouvissem… 

Quando o silêncio já durava um bom tempo, sai. Esperava restos de uma tragédia, um corpo no chão, sangue, uma arma, e lá, em frente ao espelho, uma travesti, com os olhos em direção a seu reflexo, molhava o rosto com gestos pausados. Com gestos pausados como quem não quer ser olhado… Não demorei para subentender o que tinha acontecido… 

Passei reto. E não que não quisesse dizer algo, mas o que poderia dizer? O mundo é assim, as pessoas pensam assim… Chamamos a polícia, denunciamos eles por agressão física, moral? Sim, verdade, é mais fácil que te prendam… Eu te entendo, já sofri outros preconceitos… Você me entende o caralho… 

Mas acho que foi mais pela inércia que não falei nada… 

Me sentei pela terceira vez no mesmo banquinho, queria dar uma volta mas não tinha energias. Mesmo meus pensamentos não conseguiam surgir, e não vi nem quem estava ao meu redor, nem prestei mais atenção no casal de caipiras, os quais aposto que estavam no mesmo assunto. E os minutos, indiferentes, correndo no relógio na minha frente. Duas e dez, duas e quarenta, três e cinco…Pouco a pouco o mundo chegando perto do embarque… 

Até que, não sei por que, ao imaginar em flashes a sequência do estranhíssimo, mas possivelmente cotidiano, tumulto (Como tinha começado? Teria recebido algum golpe ou assédio? Será que teria reagido?), me veio o óbvio. Eu não tinha visto a travesti sair do banheiro… Claro, podia ser que tivesse saído sem eu ver, eu estava no meu mundo, mas intui o contrário, e um medo indefinível me invadiu. 

Fui até lá, e não precisei muito para ver onde estava. Jogado no chão, aparentemente sem consciência, estava aquele corpo que antes se olhava no espelho. Um menino, terninho roxo claro, cabelos com gel, e que por que raios não sei de onde tinha surgido, ao seu lado chorava. 

“Ele, ela se cortou, está sangrando… que que se faz nesse momento? Que que se faz?” Eu também não sabia, demorei talvez segundos preciosos pensando, até que colocamos enfim um papel higiênico para conter o sangramento e liguei pra ambulância. 

Quando eles chegaram as pessoas abriram os olhos, um rebuliço crescente, uma voz curiosa levantando a outra. 

Os enfermeiros retiraram ela do banheiro, puseram ela nos banquinhos e, enquanto pelo visto faziam um breve exame para ver se resistia até a ambulância e colocavam uma gaze decente sobre o corte, a rodoviária inteira, umas vinte pessoas, saiu dos assentos e, para desespero dos profissionais, grudaram os olhos o mais perto possível, como quem vê o último episódio de uma serie que acabaram de descobrir. 

O casal de caipiras cochichando, talvez rindo às escondidas. O menino do banheiro chorando junto aos pais, estes atônicos e talvez mais preocupados com o filho que com o outro. Os jovens que escolhiam as músicas na lanchonete agora sérios, as bochechas contraídas, como quem por primeira vez vê a morte. O pedinte viciado em crack alheio a tudo, só se aproveitando da pequena multidão, pedindo dinheiro pra mesma passagem. E a mulher de olhos bruxos, ali, de volta, andando em círculos, repetindo pra si o “alguém vai morrer”, só mais alto e às vezes junto a um terrível “ninguém sabe onde ir”.  

Quando esta passou ao meu lado, sem conseguir me controlar, murmurei para ela “talvez você tenha razão”, mas ela sequer me olhou. E, curiosamente, nem olhava para a pessoa que de fato podia morrer. 

(E por acaso os donos das vozes do banheiro olhariam a cena? Entre as pessoas ali tinha só uns três homens de trinta a quarenta anos -pelo timbre das vozes deduzia serem dessa idade- e em nenhum, pelo tipo de olhar idêntico aos demais, conseguia visualizar os gritos e estrondos. Enquanto isso o corpo imóvel entre as mãos dos enfermeiros, os olhos em volta hipnotizados. Sim, talvez eles os assassinos não estivessem ali,talvez todos nós pudéssemos ser os donos das vozes…) 

E logo os enfermeiros se levantando, praticamente só eu os seguindo, além de mim o cara e a garota da jukebox, o menino e seus pais, mais uns três rostos semidesconhecidos, uma pequena procissão… Os assentos, as lanchonetes, as sombras dos guichês e os rostos ao longe, tudo passando como sonho… 

“Como é a situação?” perguntei aos enfermeiros enquanto seguia o cortejo. “Fui eu que chamei a ambulância, por favor como é a situação?? Me falem, fui eu que chamei, fui eu que vi tudo”, insisti ignorando que o menino talvez tivesse visto mais. E um deles, com o pé no elevador de emergências, em frente daquela entrada-saída do metrô, apenas respondeu, “é grave, muito grave”.  

A porta do elevador se fechou, em um segundo aquele corpo desapareceu da minha vista. E mal o elevador se fechara o pai do menino comentou para mim: “pelo que ouvi eles falando o corte não é o pior”, e o menino, com voz de quem se desculpasse, “moço, ele tomou alguma coisa, uma daquelas pílulas que matam, ouvi um doutor comentando pro outro…” 

Quando tudo cessou, quando sem desviar o olhar do parapeito já tinha perdido a visão da travesti e dos enfermeiros na ambulância, e quando mesmo o resto da inútil procissão já se afastava, conferi o relógio: faltavam dez para as quatro.  

Com toda a frieza do mundo sai dessa entrada-saída do metrô, cruzei novamente a rodoviária, desci sorumbático as escadas e me dirigi para o embarque. 

Dentro do ônibus vi como a rodoviária Tietê se transformava em uma sombra espessa, ela que querendo ou não eu voltaria a ver muitas vezes, e logo a procissão de edifícios, de casas quase favelas, e só então a pista silenciosa e plantações de eucaliptos. E eu sabia, a culpa viria, e aquele ódio tanto de mim como do mundo, qualquer coisa que eu ou outro fizesse teria mudado o desenlace. E, de olhos fechados, sem dormir mas não de todo acordado, eu repassava as imagens, tudo tão concentrado como quando um velho repassa sua vida. 

O casal caipira de braços abertos, o rosto da travesti frente ao espelho, as vozes grossas como explosões, a mulher de olhos bruxos, os sorrisos dos jovens ao pôr a jukebox e sua posterior tristeza sepulcral, o “essas coisas não deviam nem existir”, o casal falando da filha, a filha apanhando, o pulso cortado e o corpo no chão sujo, o rosto sedutor e repulsivo da mulher de rosa choque, duas horas sai sessenta reais, o mendigo com o manto verde, amarelo e azul, a travesti novamente (não usarei essa palavra pela culpa?), o desespero inocente do menino, de novo a travesti se olhando no espelho, agora talvez morta… E entre tudo isso, sem adormecer nem me manter acordado, no semiescuro que não acabava, eu não conseguia parar de pensar, 

“Quantos ainda não irão morrer nesta noite?” 

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Gonzalo Dávila Bolliger nasceu em 1989 em Lima, Peru, e se mudou para o Brasil em 1994 com os pais. Estudou Letras na USP, trabalha como professor e tradutor e tem como livros: Rumo ao Âmago da Própria Voz (poesia, pela editora Autografia); Poemas esparsos (primeiro livro feito, quando o autor ainda era adolescente, publicado pelo selo Pandora); As Realidades Invisíveis (conjunto conceitual de contos, novelas e romance; pela editora Autografia), Um Gato no País dos Evangélicos – uma sátira da nossa sociedade (novela, pela editora Autografia e também pela Maracaxá), As Fronteiras do Sonho (novela, pela editora Maracaxá), A Melancolia (poesia, pela Piraputanga) e a tradução do poema Altazor do chileno Vicente Huidobro (pela editora Maracaxá).  É apaixonado por vários assuntos como artes, psicologia, antropologia, biologia e história.


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Um comentário

  1. Prosa inquietante, que traz na boca do estômago a mecânica fria da vida cosmopolita. Engraçado porque, talvez, apenas aqueles que já frequentaram as Rodoviárias desse Brasil para entender essa dura realidade, travestida em ficção. Gostei muito!👏👏👏👏

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