Cortina de Fumaça 

4 anos 

A fumaça sobe numa espiral miúda, tímida, quase pedindo desculpas por atrapalhar o fogo da vela; adultos e crianças (também um cachorro) em volta da mesa me dão os parabéns como se fosse incrível isso de conseguir me manter viva até os quatro anos de idade, e acho que a comemoração principal é dessa mulher adulta, a que me toma nos braços quando durmo, esquecida de mim mesma em qualquer canto da casa e depois me vejo na cama, pijama e cabelo em trancinha, confortável. 

9 anos 

Difícil brincar com os meninos da rua, todos uns monstros, com suas garras e seus dentes afiados procurando encrenca; detesto todos e evito cada um, mas hoje brinco com eles porque estou entediada e o cheiro de carne queimada me lembra porque nunca brincamos juntos: vejo os olhos mortos do passarinho, o bico semiaberto, a plumagem rala, o bicho pedindo socorro depois de morto, me tire desses meninos, mas não há tempo, acertaram com a baladeira o passarinho e agora se completa o ritual, vão queimá-lo, o cheiro da carne queimada, das asas queimadas, não sei quem trouxe o fósforo, ainda bem que mataram o coitado antes de tocarem fogo, assim a dor é menor; quando os meninos deixam o lugar e se esquecem do passarinho eu olho a fumaça pequena que sai do corpo queimado quando toco nele com meus dedos, e o toque é bom. 

(naquela mesma noite o passarinho entrou em meus sonhos, o corpo em chamas, a fumaça ocupava todo o sonho, ele me via com buracos no lugar dos olhos, o bico semi aberto e perguntava por suas penas) 

15 anos 

Todas as meninas da escola já beijaram alguém. A Amanda C. até já deu, ela chegou toda cochichos, mas contou como quem quisesse usar um microfone. Em geral eu não me importava com beijos e mãos em fechos de sutiã — nem peito eu tenho — mas a Amanda C. falou como doeu e foi bom e eu quis. O Cardoso estava na oficina quando entrei. Sozinho. Meu pai tinha viajado, aí a oficina ficava aos cuidados do Cardoso porque ele era o mais confiável, entrei de vestido. Sem calcinha. Cardoso, chamei, vem aqui que preciso te entregar uma coisa que o pai pediu. Ele veio com aquela flanela. Limpava os dedos com a flanela. Eu sabia que seria fácil. Porque o Cardoso já queria. Ele sempre me olhava como quem mastiga. O que foi, ele quis saber. A língua já se armando no lábio superior. Pensava ser caçador. Esperei que ele se aproximasse e o agarrei. Cardoso não demorou a entender qual a coisa que eu tinha pra entregar. Depois que terminou, ali mesmo apoiando meu corpo sobre uma Kombi, ele bateu na minha bunda com carinho e acendeu um cigarro. Não senti nada, a dor não foi tanta. Prazer nenhum. E foi muito rápido. A fumaça do cigarro que Cardoso soprava se distanciava de mim e eu queria tocá-la com os dedos para ver se meu prazer tinha escorrido por ali. 

23 anos 

A fumaça que vem é densa e branca. Não vem do fogo, é de água. Eu acho que é de água. Gelo seco é água? Estou passando Kajal nos meus olhos e Baby conta uma história maluca: um homem que cortou o próprio pau depois de saber que tinha AIDS. Morreu? Como, de AIDS? Claro que não morreu. Mas você disse que. Chega. Você não entende nada. Você não conta uma história que preste, é toda cheia de furos. Minutos depois, estamos as duas em cena, dando loucas gargalhadas numa comédia que é o rascunho cruel de nós duas. A fumaça embaça minha visão mas eu sei que depois da peça aquele homem vai deixar aqui uma rosa solitária, no camarim, sem nenhum cartão. Depois, vai sumir pela fumaça da cidade, onde o aguarda a mulher que espera um bebê e que nunca vai ao teatro. É por essa mulher, mais que por ele, que me apaixono, mas é com ele que vou pra cama quando ele mente que precisa trabalhar até mais tarde, a voz sofrida segurando o telefone fixo da minha cozinha, enquanto, no mesmo instante, monta em mim sobre a mesa de mármore que ganhei de minha mãe. 

(às vezes fico na frente da casa deles e vejo quando ela desce com o lixo e eu sinto que poderia comê-la, bebê-la, incendiá-la, é nela que penso quando ele me toma na cozinha e nessas horas sinto o gozo vir como um presente). 

36 anos 

Observo a pilha de papéis que formei e dou a mim mesma um instante antes de destruí-la. Seguro o isqueiro, ainda que não fume mais, sempre tenho um isqueiro. Queimo a ponta de um dos papéis e com ele vão se queimando contas, registros, cartas e fotografias de alguém que não lembro mais. Quando termina e a fumaça é quase fugaz, lembro de um sonho que tive há muito tempo — um passarinho queria buscar suas asas dentro da fumaça. 

(silêncio, silêncio, silêncio) 

51 anos 

Silêncio. 

72 anos 

Há tempos não lembro de nada. Esqueci de trancar a porta? Fechei a porta do quintal? Onde deixei o controle remoto? Será que eu tive algum filho? Meus pais ainda estão vivos? Lembro de um homem que há muito tempo se deitou sobre mim, os dedos sujos de graxa me entregavam uma rosa vermelha — seria isso ou estou misturando as coisas? Acho que era uma mulher que me dava rosas vermelhas, já não sei. Hoje resolvi cozinhar. Não sei se ainda sei cozinhar, não lembro o prato que coloquei no fogo. Fogo. Fogo. Fogo. 

(Meu corpo esquentando como o de um passarinho sem asas, a carne queimada de bruxa, a fumaça que vai restar de mim.) 

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Rute Ferreira nasceu em São Luís (MA) em 1991 e atualmente vive em Tutoia, no litoral do estado. Possui graduação em Teatro pela UFMA. É autora de outros dois volumes de contos, eu te serviria meu coração com vinho branco (ed. voz de mulher) e a estranha mania das abelhas (ed. urutau) e do romance bordado em ponto corrente, que está concorrendo ao 8º Prêmio Kindle. 

Instagram : @ruteferreiras_ 


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