Simbologia e Luta Feminista na obra de Remedios Varo: Uma análise do quadro “Mujer Saliendo del Psicoanalista” (1960)

O presente artigo tem como proposta relacionar simbólicamente o quadro “Mujer Saliendo del Psicoanalista”, com o pensamento esotérico feminista da pintora espanhola Remedio Varo. Para tal, será feito um breve panorama sobre a trajetória da artista, com enfoque em seus anos vivendo no México, elucidada sua relação com a doutrina do guru armeno George Gurdjieff, e então após uma análise dos elementos pictóricos do quadro, serão levantadas propostas acerca de sua interpretação, e como estas suscitam discursos exaltando a libertação das mulheres e queda do patriarcado. Ao produzir este material, é também pretendido endossar a produção de material em português sobre artista e estimular a realização de mais trabalhos acadêmicos sobre mulheres pintoras. 

María de los Remedios Alicia Rodriga Varo y Uranga, conhecida como Remedios Varo, nasceu no ano de 1908 em Anglès na Espanha. Foi seu pai, Rodrigo Varo y Zajalvo, um engenheiro hidráulico intelectual e seguidor do universalismo, que desde cedo reconheceu em Varo sua vocação artística. Profundamente influenciada pelo pai, os primeiros trabalhos de Remédios foram esboços técnicos e laudos de arquitetura, tendo por referência as obras de Edgar Allan Poe e Hieronymus Bosch. 

Mesmo com sua predileção pela ciência, misticismo e filosofia, Varo frequentou durante muitos anos um colégio católico por insistência de sua mãe, Ignacia Uranga Bergareche. Percebendo o catolicismo como claustrofóbico, a artista ao formar-se em 1924 matriculou-se na Real Academia de Bellas Artes de San Fernando em Madri, famosa por ser muito conservadora em seu ensino e por ter expulsado Salvador Dali no mesmo ano em que Remédios tornou-se caloura. 

Na academia, Remédios cria uma afinidade muito grande com o Surrealismo, corrente parisiense de pintura que se difundiu pelo mundo todo durante o séc.XX. Varo assim como outras mulheres artistas, tais como Lenora Carrington, Dorothea Tanning e Kay Sage, incorporaram-se ao movimento ainda na década de 30, quando este já estava internacionalizado e mais consolidado, tornando o surrealismo uma das correntes de pintura com maior adesão de artistas mulheres, apesar do número ainda ser bastante desproporcional se comparado aos artistas homens.  

Em 1936 Remédios participou de uma exposição com os Logicofobistas, grupo de artistas avant-garde que procurava a união entre a arte e a metafísica. Sobre o episódio, Varo escreveu “Nós estamos fazendo o possível para criar algo completamente ‘surrealista”’. Nos anos seguintes, a artista conhece Benjamin Péret, seu futuro marido e também poeta surrealista, que a inseriu dentro de um circuito de militância política apoiante da República Espanhola.(8)Em 1940 Peret é preso por “atividade politica”, Varo como sua companheira também tem a mesma sorte e vive traumáticos meses na prisão, após a sua soltura, o casal foge para o México em 1941 quando os nazistas invadem Paris. 

No México, Varo realizou uma série de trabalhos desde pintura de móveis, restauração de artefatos pré-colombianos até design comercial. Em 1942, trabalhou com Marc Chagall, criando indumentária para o balé “Aleko”, em 1947 foi para a Venezuela e trabalhou em uma campanha publicitária para a marca de farmacêuticos Bayer. Na época, a artista tornou-se amiga de outros refugiados europeus e expatriados, incluindo Leonora Carrington, Kati Horna, e Gunther Gerzso. Sua amizade com Leonora foi de particular importância visto que as duas influenciaram o trabalho uma da outra.  

A produção de Remédios atinge sua fase madura nos anos 50 quando a artista casa-se com o empresário Walter Gruen e adquire estabilidade financeira para produzir livremente. Seu período maduro perdura até o final dos anos 60 e os quadros produzidos nestes anos são ótimos representantes do movimento surrealista, pois utilizam-se do sonho e do onírico como inspiração, além de ilusões de ótica, dissociação de imagens figurativas convencionais, predileção pela fantasia e por elementos surreais, em adendo à linguagem simbólica e incorporação de conceitos psicanalistas como forma de exploração da mente humana.  

Na mesma época Varo entra em contato com a filosofia de George Gurdjieff, Guru armeno que pregava o “despertar da consciência” através do método da “lembrança de si”. Tal filosofia pensa no homem como uma “máquina humana”, a qual pilotamos inconscientemente da sua potencialidade, portanto o processo de autoconhecimento estaria atrelado ao “lembrar-nos” da nossa potência interior, harmonizando nossos sentidos com práticas cotidianas. É também pregado por Gurdjieff a separação da identidade deste verdadeiro eu, das demais identidades que temos de nós mesmos dentro de nossa mente, que segundo ele, são criadas através das percepções empíricas que temos da realidade à nossa volta. 

Tendo como objetivo o despertar do homem interior adormecido, Gurdjieff defendia determinadas práticas artísticas, tais como a dança e música, por acreditar que desta forma, a verdadeira consciência poderia exteriorizar-se sem as barreiras da mente consciente. Varo aproveita-se deste conceito para a realização de seus quadros e ao incorpora-lo á expressão surrealista, a artista procurava a partir da manipulação da imagem, despertar gatilhos subconscientes nos espectadores de suas obras. 

Partindo do princípio que nenhum dos elementos simbólicos colocados dentro da pintura estão dispostos ao acaso, o quadro “Mujer Saliendo del Psicoanalista”, se mostra emblemático. Terminado em 1960, a obra tem um tamanho relativamente pequeno, possuindo as dimensões de apenas 60cm x 40cm, e pintado a óleo. Na cena é possível ver uma figura feminina como figura central em um ambiente onírico rodeada por uma construção com duas portas, e por causa da fumaça que sai de uma delas, há a ilusão de que esta figura caba de sair por esta, que remetendo ao título da pintura, deduz-se que seria o consultório do psicanalista. 

A figura tem os cabelos em formato de nuvem, veste um traje volumoso e verde, o qual parece ter uma máscara acoplada, que no momento está abaixada e pendurada em seu pescoço. Em uma das mãos a mulher carrega um pequeno balde em forma de bolsa, e na outra, parece atirar em um poço de água localizado no chão abaixo dela, a cabeça de um homem, representado como um espírito, ou um ser fantasmagórico. 

Varo pensa na composição da pintura de forma vertical e simétrica, utilizando as vértices das portas e do teto da construção para criar uma ilusão de ótica de aprofundamento, o único elemento que foge a simetria é a própria mulher ao centro, o que direciona o olhar do espectador diretamente para ela, como se o atraísse naturalmente. O efeito magnético provocado por esta composição é intensificado com o próprio olhar da figura que encara o espectador, como se este fosse cúmplice e também observado pela mesma. 

Esta pintura é profundamente influenciada pelas teorias freudianas e pelo simbolismo oculto dos sonhos correspondente aos mistérios da psyché, uma vez que a própria pintora executou este quadro após ter um sonho vivido com o tema. No quadro há o confrontamento e o descarte da figura paterna, vista na psicanálise como uma figura restritora, após uma visita ao psicanalista. Na placa do consultório, colocada ao lado da parede, é possível enxergar as letras “DR. F.J.A.” que podem ser interpretadas como as iniciais de Freud, Jung, e Albers, cujas teorias pautam outras obras da artista 

Outro detalhe que chama atenção é a máscara pendurada no pescoço da mulher, que pode ser vista como um utilitário que a protege de exibir sua verdadeira face ao mundo, ou então como uma venda que limita sua visão do exterior. Em ambos os casos o acessório se encontra baixado após a visita ao médico, indicando que a personagem não só pode ser vista em sua verdadeira forma, como pode ver mais claramente o seu entorno, o que inclui o espectador do quadro, o qual ela lança um olhar direto. 

Ao todo, ao descartar a figura fantasmagórica masculina, relacionada ao pai, em um poço com água, o elemento ligado às emoções e a família dentro das tradições esotéricas. Varo procura representar tanto a recuperação da liberdade feminina e do despertar da conciencia de si ao incitar o abandono de antigas figuras restritoras, quanto uma postura feminista e politica se pensarmos na figura do pai, como uma simbologia para todo o patriarcado. 

Tal qual uma fita de moebius, que desdobra-se e entrelaçam-se dentro de si mesmo, os quadros de Remédios possuem a mesma flexibilidade ao agregar diferentes discursos e significantes, entrelaçados dentro da nuvem mística do onírico que perpassa suas figuras (majoritariamente mulheres) detentoras do poder e da ação. Ao despertar gatilhos psicológicos e correlaciona-los com questões políticas e de gênero, Varo transforma seus quadros em manifestos feministas mais que atemporais, perpétuos.  

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Bibliografia:

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HAYNES, Deborah J. (1995). The art of Remedios Varo : issues of gender ambiguity and religious meaning. Revista Woman’s art journal, 1995, 16, 1, spring-summer. Pags 7 ill. 

LUCAS, João.L.A. (2007-2008).Remedios Varo (1908-1963): El Viaje Interior Revista Espacio, Tiempo y Forma, Serie VII, H. a del Arte, t. 20-21, 2007-2008, págs. 341-361. 

OLIVEIRA, Juliana. M. da S. (2019). As máquinas analógicas de Remedios Varo. Revista Extraprensa, 12(2), 68-84.  

MACHADO. Leticia F.B. (2019). “Gênero e representações da feminilidade no surrealismo: Leonora Carrington e Remedios Varo como estudos do caso” Dissertação de Pós Graduação em Artes, Língua e Linguagem. Universidade Federal de Juiz de Fora. Minas Gerais 

MUNDY, Jhennifer.(2001) “How to produce Erotic Dreams: A recipe by Remedios Varo” Published Postmortem. Tate Publishing. London, Pags. 306 Disponível em : https://www.maramarietta.com/the-arts/painting-drawing-sculpture/artists-p-w/varo/. Acesso em 20 de novembro de 2021 

REMEDIOS VARO – BIBLIOGRAPHY AND LEGACY. The Art Story Disponível em:https://www.theartstory.org/artist/varo-remedios/life-and-legacy/ Acesso em: 20 novembro de 2021’ 

VARO. R. Vida Y Obra: Artista Surrealista. Remedios Varo Website. Disponível em:https://www.remedios-varo.com/ Acesso em 20 de novembro de 2021 

WHITE, Jacquelyn Y., (2014). “The Surrealist Woman: the Art of Remedios Varo” . Syracuse University Honors Program Capstone Projects. 744.

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Sara da Silva Uliana 

Graduanda em Museologia pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), ex-graduanda em História da Arte pela Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa relações entre Arte Contemporânea e prática museal e possui interesse em temas da Fotografia, Documentação Museológica, Cosmopolítica, Feminismo e Arte Urbana. Contato: sa.uliana@hotmail.com 

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