Dentre os artefatos culturais humanos por excelência — e.g., a política, filosofia, religião, ciência, a psicoterapia, para nomear alguns —, a arte é o mais difícil de ser cooptado como um mecanismo de repressão das forças naturais da humanidade, quais são: a espontaneidade; a paixão criativa; a ludicidade; e o egoísmo e a moralidade animais1. E, quando o é (por exemplo, quando regimes autoritários se utilizam da arte para propagandear seus princípios e agenda política às massas), apenas imprecisamente pode continuar a ser chamada pelo mesmo nome. Antes, porém, é preciso diferenciar: fala-se aqui da arte que se propõe a utilizar-se da matéria-prima vital do homem em sua relação com o mundo, conservando no intuito e na execução um princípio estético de expressão que dá ênfase à comunicação de determinado aspecto da experiência humana ou a essa experiência mesma, ou que visa pesquisar possíveis verdades universais do ser humano no mundo e às qualidades essenciais da beleza, e não àquela que se pretende, realiza e esgota-se exclusivamente no plano do entretenimento. Com efeito, o artista aqui referido é tal qual o poeta — ser de letras e ação — que Walt Whitman chamou de kosmos: indivíduo que “não moraliza nem dá lições de moral”, mas “conhece a alma”, que porque “vê mais longe ele é o que tem mais fé”, que “vê a eternidade nos homens e nas mulheres” e “se situa aonde o futuro vira presente”¹.
Isso posto, gostaríamos de chamar atenção ao fato de que, mediante análise, é curiosa e delicada a posição do ser humano na estrutura de suas criações: instituidor da cultura, nela atua e por ela é moldado em uma fórmula de coafetação simultânea, mas assimétrica, visto que se corre o risco de tanto o indivíduo quanto a sociedade serem escravizados pelo poder instituinte de suas próprias criações. Porém, a arte, enquanto criação sem finalidade utilitária, por exceção resultante de sua natureza e função, aponta para uma saída: ainda que determinada pelas condições objetivas e as circunstâncias específicas da conjuntura atual à sua produção, a realização artística tem o potencial de transcendê-las e materializar o impensado, o imprevisto, o extraordinário — o inovador. O que é inevitável, uma vez que “o futuro é o que artistas são”². Nada obstante, sabemos que algo semelhante ocorre em outras áreas do conhecimento, basta lembrarmos das sucessões de sistemas dominantes na filosofia e as mudanças de paradigma na ciência, contudo, em arte o inovador tende, pelo menos inicialmente, a gerar não revoluções gerais ou sistêmicas, e sim pessoais — embora nada impeça que articule agitações coletivas, como no uso da declamação poética para arrebatar uma multidão; no de performances para atrair atenção dos veículos de comunicação para certa causa; ou, para citar um episódio específico de nossa história nacional, como o foi na resistência da classe artística à censura durante a ditadura militar brasileira.
Em outras palavras, ao produzir através da própria sensibilidade um artigo de valor não utilitário, sem deixar de ser um membro desta sociedade pós-industrial orquestrada por uma ordem tecnocrática e cientificista, e regida por ideais racionalistas, mecanicizantes e consumistas, o artista está criando um chamariz, uma tentação, uma armadilha benigna: quando o artigo nascido de sua manipulação dos próprios sentimentos e da realidade dada completa seu movimento dialético e expressa-se no encontro com o público, abre-se um caminho, no sujeito que o recebe, que oportuniza, ou, melhor, seduz o contato genuíno e reprofundo com as suas emoções, sentimentos e imaginação — os quais, de outro modo, permaneceriam dessensibilizados sob a couraça da cordialidade, da resignação, da apatia e dos demais condicionamentos e adestrações historicamente produzidos e sociopoliticamente implantados. E isso se faz possível porque “o que é verdadeiro sobre a Arte é verdadeiro sobre a Vida”².
Salientamos, a propósito, que as elites social, econômica e política estão cientes de que a torrente do gênio pode transbordar nas margens onde “habitam tranquilos burgueses, cujos belos canteiros de tulipas e plantações de hortaliças seriam devastados pela torrente caso não soubessem, com diques e canais, evitar inteligentemente o perigo que os ameaça”³.
Convém, agora, para aprofundar esta discussão e expandir seus desdobramentos, retomar nossa afirmação inicial, e explicá-la melhor: pois a arte é o nosso artefato cultural mais difícil de ser cooptado como um mecanismo de repressão das forças naturais da humanidade pela mesma razão pela qual a realização artística tem o potencial de transcender as condições objetivas e as circunstâncias específicas da conjuntura atual de sua produção, a saber, um produto artístico é, mais radicalmente, o artigo de uma personalidade e, graças à sua natureza parte filogenética e socialmente organizada, parte individualmente elaborada, a personalidade de dois seres humanos jamais será idêntica — como os estudos de caso com gêmeos univitelinos na psicologia, na biologia e na neurociência, dentre outras, têm concluído ao longo das décadas e a observação empírica facilmente comprova. A personalidade de alguém, afinal, é construção própria, peculiaríssima; fruto, dentre outras coisas, de suas experiências singulares, das coordenadas existenciais adotadas ao longo de sua vida e do idiossincrático uso da linguagem que é feito.
Em suma, o que aqui afirma-se é de haver o potencial de, no jogo da interpessoalidade, a arte criar signos inéditos, engendrar sentidos inauditos, prenunciar novas paisagens afetivas, anunciar uma vitalidade mais pujante — em última análise, de plantar sonhos de um novo mundo, de uma realidade diferente, de maior fôlego, vigor, e mais satisfatória. Logo, a arte, uma vez consumado seu potencial expressivo, pode fomentar no indivíduo maior capacidade de atuação política e um exercício mais consciente desta, ajudando-o a perceber-se imbricado e afetado pelo estado de coisas ao exprimir o mundo e as relações do homem consigo e com os outros no mundo como tais. Pois não é em nenhum lugar, senão no universo de experiências em que toda existência humana se dá, e por nenhum meio que não o encontro entre um e o outro, entre mim e meu igual, que qualquer saber sobre nossa condição humana — nas mais diversas ordens — é produzido e tem potencial para afetar e transformar a realidade.
ÍNDICE BIBLIOGRÁFICO:
¹ Prefácio da Primeira Edição, p. 23 (i; ii), p. 17 (iii; iv), p. 23 (v). In: Folhas de Relva de Walt Whitman. São Paulo: Iluminuras, 2005.
² The Soul of Man under Socialism de Oscar Wilde, pos. 520/758; 542/758. Livro eletrônico.
³ Os sofrimentos do jovem Werther de Goethe, p. 23. São Paulo: Abril, 2010.
a rainha má em boa?
Mateus Ântoni Rúbia é nascido e crescente em terras do sertão baiano, graduando em Psicologia pela UEFS, e amador, nos vários sentidos, em quase tudo. É o autor do romance psicológico de ficção científica Santíssima Mãe dos Mortos (Editora Kazuá, 2022). Possui prosas e poemas publicados em antologias literárias e plataformas de leitura on-line diversas. Reconhece-se como jovem demais para saber de qualquer coisa, mas, também, ousado o suficiente para tentar entender algumas.
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