Justiça seja feita

Certo, entendi o ocorrido finalmente. Não que eu estivesse em busca de entender coisa alguma, queria mesmo era me ver livre do problema, mas a dúvida não me deixava dormir em paz. 

Seis meses antes dessa tarde de inverno – alegre demais para o frio que fazia, ensolarada demais para o humor cinza dos presentes – Têmis e eu demos um tempo. Agora a gente está nessa salinha, coberta de madeira e mármore, para resolver nossa última pendência. A poeira flutua no ar, esvoaçando no rastro dos passantes. 

A gente nunca sabe quanto tempo é suficiente para se repensar a relação. Então decidi que não queria que durasse muito. Fomos casadas por seis longos e deliciosos anos, que foram para as cucuias quando começamos a discutir a adoção.  

Têmis queria inseminação com doador, eu queria adotar. Não queria um homem entre nós, um esperma doador com um CPF e algum direito sobre uma criança que ele não queria. Ela me garantia que seria anônima, é a lei no Brasil, insistia, queria gestar o bebê e que eu doasse os óvulos, teria a nossa cara. Se fosse menina, se chamaria Sophia… 

Sentada na saleta esperando ser chamada, olhei de soslaio sua figura antes altiva, vexada no banco de mogno brilhoso, cabeça baixa, e me peguei pensando onde erramos. Acho que não foi a adoção, foi antes, há dois anos, quando decidimos comprar a casa do condomínio, longe demais do trabalho, com aqueles vizinhos que nos olhavam com uma sentença expedida. E ainda teve aquele incidente com a Fronesis, a  Golden Retriever, que correu atrás de uma borboleta e foi atropelada em frente ao nosso jardim. Têmis ficou em choque, a Golden estava com ela há dez anos… A gente devia ter se mudado na mesma hora, ali tinha um quê de sobrenatural maligno. 

Mas talvez ainda não tenha sido isso, não. A gota d’água para mim foi a marca de beijo com batom pink sempre perto do ombro, nos colarinhos das blusas, percorrendo o pescoço. E aquele perfume doce, nojento, que ódio daquele cheiro! Que ódio daquela marca de batom pink que tinha cheiro de flor, peônia. Decidida ao confronto, tudo o que ela me dizia era uma desculpa sem nexo, que não cabia no meu léxico, que não dava para escusar. Aquele batom murchou meu sorriso. 

Dona Mocinha, assistente da Têmis, chegou e foi direto cumprimentá-la. É baixinha como seu nome, cabelo branco neve, casaco de flor e óculos de grau, uma belíssima representante da Iris Apfel no Brasil. Reconheci das fotos, nunca tinha vindo ao trabalho da Têmis antes, o tribunal é um lugar assustador. Reconheço o perfume doce, que me revirou o estômago e me fez desistir da gravidez, da adoção e de um pouco mais. A boca, que um dia foi fina, agora era o puro suco do botox, do ácido hialurônico, ou sei lá qual a tecnologia do momento para deixar mulheres com a boca da Angelina Jolie. E lá estava o pink. O beijo, não na bochecha, para não manchar a excelentíssima juíza, foi dado num lugar aleatório qualquer. Dessa vez foi no ombro esquerdo. 

Certo, minha cara caiu no chão. Por que não acreditei quando Têmis falou? Não fosse esse batom, que teria sido de nós? Dona Mocinha veio em minha direção e me deu um beijo estranho na bochecha. Fui até o banheiro me limpar. Encarando o espelho, entendi o ocorrido finalmente: aquela senhora decretou o fim de um problema que nenhuma de nós queria enfrentar. A nós, que tudo sobrava, faltava a maior das virtudes, o amor. Entramos na sala e assinamos o divórcio, já posso dormir em paz.  


Elaine Resende é arquiteta, doutora em engenharia civil e escritora. Contribui nos blogs Sabático Literário, Coletivo Escreviventes, Escritor Brasileiro, Quarto 42 e no Mulherio das Letras Ceará. Tem um livro infantil publicado, A Professora da Lua, pela Amazon kdp, e participou de diversas antologias. Seu perfil no Instagram @cria.elaineresende traz resenhas de livros e filmes, alguns textos e pensamentos. No canal no YT (@Lendodetudoumpouco) discute literatura. É carioca e vive com o marido, dois filhos e seu cãozinho Byron. 


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