Primeiro foi perceber onde estava. Noite intranquila e de pesadelos. Em repetição. Corpo inebriado nesse acordar de adrenalina; sem proferir palavras ou restolhar qualquer som, esgueirou-se, saindo mais cedo. O silêncio e um resto de noite ainda espalhado no céu eram seus cúmplices. O dourado labrador, dando pela presença conhecida, nem se mexeu. Já era hábito. Não estranhava, nem sequer quando saltava o muro, estando o portão apenas encostado. Rangia e isso alertaria a fuga. Pelo caminho foi largando folhas, que ia arrancando uma a uma de si, folhas brancas, algumas com uma só palavra, várias ilegíveis, outras tantas doridas, amarrotadas. Os bolsos fundos abarrotados foram ficando lentamente vazios, onde unicamente as mãos passaram a ter lugar. Caminhava de cabeça baixa. O vento passava-lhe adiante, brincalhão, e levantava uma fina poeira; se antes era razão para correr atrás dele, há muito deixara de importar-se com as constantes reviengas, até com aquelas provenientes dos mais diversos imprevistos. A estrada de terra perdia-se na curva e as pegadas no pó seguiram para lá dela, apagando-se o olhar de quem, na silhueta esbatida, esperasse ver algum rasgo de esperança. 

Andara todo o dia em percursos diversos, revezando-se entre florestas e campos abertos. Cansara-se. E nada encontrou. Nem vontade, diversão ou inspiração. Reinava o vazio. Repentinamente, escurecera.  A margem do seu mundo de água estava colmatada com destroços, revelando que a intempérie fora devastadora. Ultrapassou-os. Do outro lado, em língua de areia de formação recente, um enorme ramo arqueado, preso, abandonara-se à sorte; a sua turbulenta viagem terminara. Certamente que terá como destino transformar-se em lenha incandescente, depois cinzas, no recém-chegado e já duro Inverno. O céu carregado não permitia enganos, a chuva aproximava-se, sentia-lhe o cheiro, percepcionava a sua vibração no ar; contudo, a luz incandescente do ocaso envolvia o ramo. De repente a sua beleza foi encontrada, sendo o seu destino alterado. 

Arrancou-o do areal e, passando-o na água, removeu como lhe foi possível a areia e os fiapos agarrados. Com alguma dificuldade, protegendo-lhe os ramos menores, conseguiu arrastá-lo pelo caminho de regresso. Parava de onde a onde, e as folhas brancas, espalhadas, retornavam ao lugar que tiveram naquela manhã: os bolsos, que voltaram a ficar repletos. 

Abriu o irritante e rangente portão, fazendo-o passar, sem partir qualquer galho. Pela primeira vez naquele dia, sorriu: o seu poema estava salvo. O ramo, momentaneamente pousado no alpendre, admirou-se: onde estaria? 

De volta com uma escova de cerdas macias, foi sacudindo, limpando-lhe delicadamente todos os resíduos, até ficar como queria. Tinha a seu lado um cesto cheio de pequeninas e coloridas molas de madeira. Aos poucos as folhas escritas foram saindo dos bolsos, enchendo os pequenos galhos; mesmo as folhas brancas deixaram de sê-lo. As palavras acorriam em catadupa; rapidamente um poema ficou visualmente escrito: o que antes fora despojo e despejo de tempestade, transformara-se em algo diferentemente belo, no recanto de um alpendre que deixou de estar vazio. 


Cristina Vicente (1970) reside em Estarreja. Colabora no projecto Fotografar Palavras (Dezembro 2018) contribuindo como fotógrafa e escritora. Desde Abril de 2020 tem o seu próprio blogue pessoal, “Do pó dos dias infindáveis”. Enquanto fotógrafa, participou em exposições individuais e colectivas e em livros temáticos. Publicou em Setembro de 2021 o livro “O tempo é feito de raízes“, uma edição de autor dedicada à fotografia e à poesia. Tem contos publicados nas colectâneas “Antologia Minimalista” (2020), “Contos Minimalistas” (2021) e “Contágios – Contos & Crónicas /Colectivo Mapas do Confinamento” (2022). Publicou em Dezembro de 2022 o seu primeiro romance “Até ao dia dos girassóis“, uma edição Minimalista. Integra a Editora Minimalista desde a sua fundação.  

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