Cada dia é uma vida inteira

Me acostumei a acordar bem cedo todos os dias, sem despertador, mesmo aos finais de semana. Meu corpo já sabe as instruções. É como se ele percebesse que o barranco das minhas responsabilidades está perto de desmoronar na medida em que o sol começa a iluminar os primeiros morros. É assim que levanto toda manhã, em seguida me coloco diante da janela da cozinha para observar a noite clarear lentamente, enquanto bebo um copo de água fria do filtro de barro. Às vezes eu apenas permaneço ali, de pé, estático, observando o movimento das primeiras aves do dia. Os primeiros trabalhadores se deslocando. Os primeiros carros e ônibus se arrastando pelas ruas. Posso dizer que essa simples visada pela janela pode demorar incontáveis minutos, enquanto o meu pensamento viaja por um infinito abstrato, tentando conectar memórias, sensações, conceitos e tentando descobrir como transformá-los em linguagem e em ação. Nesse momento, meu pensamento fica em ebulição, enquanto permaneço estático em frente a essa janela.

Hoje, por algum motivo, meu cérebro tentava conectar, a qualquer custo, a minha prática no jiu-jítsu com um clássico da literatura ocidental, no caso, Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe. Pois é, eu sei, talvez eu precise procurar um psiquiatra, mas acontece que, toda manhã, um mundo novo de conexões improváveis me ajuda a construir um universo de possibilidades criativas que, imagino, me serão úteis algum dia.

No caso do jiu-jítsu não é segredo algum: me tornei uma “testemunha de Hélio Gracie”, levando a palavra do nosso senhor do jiu-jítsu como ferramenta de salvação de porta-em-porta. Muito embora a brincadeira faça referência à fé institucionalizada das testemunhas de Jeová, a prática do jiu-jítsu, para mim, se consolidou como um momento de ruptura, um ponto de inflexão. Aquele momento que se enterra o velho homem e dá lugar ao novo, juntamente com uma nova oportunidade de recomeçar. Do mesmo modo, meu trabalho na cultura pelos últimos 13 anos também passa por um possível momento de ruptura, tendo em visto que nunca me senti tão desmotivado e profundamente desanimado com meu fazer diário na arte e na cultura. Talvez por isso meu pensamento estivesse enlouquecido diante dessa janela nessa manhã em busca de valor e significado para o modo como conduzo a minha vida neste momento. Foi aí que me peguei pensando no texto da peça teatral de Goethe. Na história, Mefistófeles, aposta com Deus a conquista da alma de Fausto. Fausto, era um ambicioso erudito em busca de sabedoria que tentava, a todo custo, apreender tudo que poderia ser compreendido pela mente humana. Mefistófeles, (o próprio capiroto) e Fausto se encontram e instituem um pacto com sangue: Fausto realizaria todos os seus desejos na Terra, o próprio Mefistófeles trabalharia para isso acontecesse, porém, após sua morte, Fausto se tornaria servo do demônio no Inferno. Acontece que o acordo possuía uma importante condicional: a alma de Fausto seria levada ao capiroto apenas quando ele experimentasse uma situação de felicidade plena e verdadeira, que o faria desejar que aquele momento durasse para sempre. Essa é a parte da obra que importa para texto de hoje.

Fausto caminha por uma busca incessante por compreender o universo e o sentido da vida, mas, acima de tudo, ele busca uma epifania inalcançável. Da mesma forma, a prática do jiu-jítsu me colocou em uma jornada na qual o tatame delimita um território onde eu posso enfrentar o meu próprio universo interior, cujo sentido da vida se apresenta como um reflexo distante no espelho, um eu futuro melhor a ser perseguido, mas que, certamente, jamais será alcançado. Além disso, tanto a obra de Goethe, quanto a prática do jiu-jítsu possuem um componente espiritual e filosófico profundos. No Fausto, vemos uma exploração profunda das questões morais e éticas, bem como uma busca pela redenção. No jiu-jítsu, eu sou convidado a seguir um código de conduta que enfatiza o respeito, a disciplina, a humildade e, muitas vezes, me confronto na prática com tomadas de decisão que envolvem a construção do meu caráter.

Outra semelhança que meu pensamento louco percebeu é a ideia de enfrentar desafios. Fausto faz um pacto com o diabo e enfrenta inúmeras adversidades em sua busca pelo conhecimento e pela felicidade plena. No jiu-jítsu, sou frequentemente colocado em situações onde preciso enfrentar oponentes mais fortes, mais técnicos e mais habilidosos, e através da própria técnica e da estratégia posso encontrar os elementos sólidos para superar essas desvantagens e, pelo menos, não ser finalizado. Me parece que, em ambos os caminhos, meu pensamento percebeu a superação de obstáculos, e uma espécie de busca por excelência como um ponto de conexão, ainda que distante, entre a referida obra literária e a prática da arte marcial. Ele percebeu que Fausto deseja transcender os limites humanos em busca daquele momento que poderia durar para sempre, enquanto os praticantes de jiu-jítsu buscam aperfeiçoar suas habilidades e alcançar o entendimento pleno da arte marcial, do corpo, da mente, do espírito e encontrar o sentido da sua prática como um caminho para a não-violência, para o esvaziamento do pensamento e para paz interior. 

Acho que o mundo louco da abstração da mente humana conduziu o meu pensamento para tentar encontrar alguma forma de grandeza nessa manhã, uma potência humana comum em todas as nossas práticas, ofícios, sentimentos e ações. Algo que repousa no conhecimento, mas também na habilidade física, na fé e na sensibilidade, que aponta para o valor da existência na própria busca por significado a cada novo dia. É como se cada dia fosse uma vida inteira na frente dessa janela, uma vida inteira que poderia durar para sempre. 

 


Frederico Lopes é artista e educador, graduado em artes pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em gestão cultural pela FAGOC. Possui treinamento profissional em conservação e restauro de papel pelo LACOR/MAMM-UFJF. Atuou no setor de curadoria e expografia do Museu de Arte Murilo Mendes de 2013 a 2017. Integrou a equipe de implementação do Memorial da República Presidente Itamar Franco, onde trabalhou na curadoria e na coordenação da divisão de educação até 2020. É fundador da Instituição Cultural Bodoque Artes e ofícios (2012), da Revista Trama (2019), do Museu de Artes e ofícios de Juiz de Fora (2020) e do Laboratório de experimentação em artes visuais e design (ARTELAB). Foi membro do conselho curador do MRPIF e suplente da vice-presidência do Conselho Municipal de Cultura na cadeira de artes visuais e é sócio honorário da Instituição Cultural Estação Canelas (Portugal). Também atuou como designer na editora Harper Collins (2022 – 2023). É autor do livro: Ensaios sobre Arte e Cultura (2022)


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