[ENTREVISTA] Lília Schwarcz eleita Imortal -real e simbólica- pela ABL

A nossa entrevistada nessa primeira edição de 2024 da revista “Trama” é a historiadora e antropóloga Lília Moritz Schwarcz. A convidada, obviamente, dispensaria apresentações, considerando a vasta divulgação e alcance de sua produção intelectual para além do âmbito acadêmico, além, é claro, de sua ativa e aguerrida participação nas mídias, a frente de importantes debates sobre o nosso tempo.

Vale lembrar que essa não é a primeira vez em que a ilustre convidada colabora com a nossa mais longeva revista de arte e cultura de Juiz de Fora. Em setembro de 2022, ela nos brindou com um texto que nos fez refletir sobre os desafios das “comemorações” dos duzentos anos de independência do Brasil em um contexto marcado por eleições presidenciais demasiadamente polarizadas e repletas de ameaças ao Estado democrático de direito.

A escritora também flertou com a nossa Juiz de Fora por ocasião da pesquisa e escrita de seu livro “As Barbas do Imperador”, no qual explorou com afinco diversos objetos referentes a D. Pedro II no Museu Mariano Procópio. Nesse momento, encantou-se com a enorme potencialidade do acervo dessa instituição para pesquisas de relevância nacional e internacional.

Com formação em História e Antropologia, Lilia é livre docente e professora sênior do Departamento em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. Desde 2011, também é professora visitante em Princeton, nos Estados Unidos.

Acumulando em seu currículo diversos prêmios e títulos nacionais e internacionais, Lilia é pesquisadora Sênior do CNPq, com muitos livros publicados, a saber: “Retrato em branco e negro”; “O espetáculo das raças”; “As barbas do Imperador”; “A longa viagem da biblioteca dos reis”; “O sol do Brasil”; “Brasil: uma biografia” (com Heloisa Starling); “Lima Barreto: triste visionário”; “O autoritarismo brasileiro”; “A bailarina da morte” (com Heloisa Starling); “Enciclopédia Negra”; “Biografias afro-brasileiras” (com Flavio Gomes e Jaime Lauriano); “Os óculos de cor”; “A batalha do Avaí” (com Lucia Stumpf e Carlos Lima); “Pérola imperfeita”
(com Adriana Varejão); “Histórias Mestiças” (com Adriano Pedrosa); “Dicionário da escravidão e da Liberdade” (com Flávio Gomes); “Um enigma chamado Brasil” (com André Botelho); dentre outros. Também coordenou a coleção “Perfis Brasileiros”; o volume 4 da “História da Vida Privada no Brasil” e os volumes do “História do Brasil Nação”.

Além de sócia do IHGB e atual membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Presidência da República, foi eleita, recentemente, para a cadeira n. 9 da Academia Brasileira de Letras, onde tomará posse como uma das poucas mulheres a ocupar esse espaço tão simbólico e relevante nas letras nacionais. É sobre esse assunto em específico que vamos falar nessa entrevista.

Lilia, antes de mais nada, muito obrigado por aceitar nosso convite! Seja muito bem-vinda!

Sérgio Vicente : Como você avalia o seu processo de inserção na Academia Brasileira de Letras? Quais foram os maiores desafios nessa empreitada? E o que mais teria contribuído para essa conquista? 

Lília Schwarcz: Eu fui muito motivada – não sei se “motivada” é o melhor termo -, mas foi movida pela emoção que me candidatei a essa vaga na ABL, vaga essa ocupada pelo acadêmico Alberto da Costa e Silva, que era para mim – não há nenhum segredo nisso – um pai afetivo e um pai intelectual também. Alberto já sempre me falava de entrar na Academia, e eu nunca achei que era o caso, por não ter tanto tempo para me dedicar e por não achar que eu era a pessoa certa e tudo mais… Quando ele faleceu, resolvi, de alguma maneira, fazer o meu processo de despedida com o Alberto, que me faz tanta falta, entrando nesse ritual da ABL, da candidatura.  

Penso que, em primeiro lugar, os membros da ABL consideraram que eu, de alguma maneira, faço parte desse legado do Alberto da Costa e Silva no que se refere à história. É claro que não sou poeta, cronista, diplomata como Alberto, tampouco tenho essa formação em África que ele teve…, mas herdei – com muitas aspas – de Alberto essa paixão pela questão da equidade racial e social no Brasil. Acho que esse é o primeiro motivo.  

O segundo motivo há de ser pelo fato de eu ser uma historiadora. Além de Alberto, faleceu o José Murilo de Carvalho, outro historiador que era um mestre para mim. E penso que eles estavam refletindo na vaga de um historiador.  

Também acredito que deve ter tomado força essa ideia de eu ser uma mulher. A Academia, como você sabe, só aceitou mulheres a partir de 1976. Antes, o termo “escritores” era tomado apenas no masculino, e somente em 1977 é que a primeira mulher, Raquel de Queiroz, foi eleita. Assim que eu entrar – eu não fui empossada ainda – serei a quinta mulher dessa gestão, e, no total, foram 11 mulheres. É muito maior o número de membros masculinos. Essa é uma instituição tradicionalmente masculina, tradição essa pensada na lógica do livro de Eric Hobsbawm, que mostra como as tradições são todas inventadas. E, depois, eu quero crer que acúmulo um currículo que vai ao encontro do que se espera (imagino eu, né, Sérgio!) de uma acadêmica. Tenho vários livros publicados e uma atuação pública que pode ajudar a engrossar forças na Academia.  

SV: Na sua opinião, que impactos a sua nova condição de integrante da ABL trará sobre a sua produção intelectual? Por quê? 

Lília S: É muito difícil prever o que acontecerá daqui pra frente… Eu acho que terá um impacto. O presidente da Academia, o Merval, já destacou que ele quer que eu dê continuidade a um trabalho que José Murilo [de Carvalho] organizava, e não teve tempo de terminar por conta do falecimento, que era uma iconografia de Machado de Assis. Então, acho que essa já é uma primeira tarefa. Imagino que vou poder me embrenhar muito mais nos arquivos da ABL e tomar parte nessas atividades culturais que a ABL realiza, tanto na área cultural – de uma forma mais ampla – como nas áreas de história e literatura também. É difícil dizer o que virá por aí… Mas tomarei conhecimento maior desse cotidiano, verei como posso me inserir nele e, dessa maneira, também, ter novas ideias para novas obras, livros, títulos, seminários e exposições. 

SV: Qual seria o papel social de uma imortal da ABL na sociedade contemporânea? 

LS: Eu sei que essa questão da imortalidade está no logo da ABL e no cargo, que é vitalício, mas eu acho que, em tempos contemporâneos, imortal é apenas a nossa luta por justiça e equidade. Ninguém é imortal no seu destino, como nós sabemos. Como diz o antropólogo Marshall Sahlins, de que eu gosto muito, antropólogo norte-americano, “existem duas verdades na vida acadêmica: a primeira é que morreremos, a segunda é que estaremos errados e erradas”. Então, eu aqui continuo com a minha humildade. A humildade dos teimosos que insistem acreditando que a ideia de imortalidade é muito mais simbólica do que de fato real. Nesse sentido, é muito impressionante, mesmo nesse mundo contemporâneo, a carga simbólica que a Academia carrega. Eu poucas vezes recebi tantas mensagens emocionadas e generosas, que falam muito desse local social que a ABL tem. Por outro lado, nessa sociedade contemporânea, a ABL precisa também se modernizar, não é? Eu estudei muito Lima Barreto, um escritor negro da Primeira República, que foi três vezes vetado pela Academia, sendo que, na terceira, desistiu. Então, evocando o nome dele, eu chamo atenção para o que falta na Academia.  

Ailton Krenak foi eleito recentemente, vai tomar posse no começo de abril, mas é a primeira pessoa indígena na ABL. Sabemos como são poucas as pessoas negras, como são poucas as mulheres. Eu sou a quinta mulher nessa gestão… Então, se eu puder lutar por uma ABL mais plural, mais pública, mais democrática, nesse sentido, é o que farei. Acho que, quando eu fui eleita – tem uma coisa que os membros não podem reclamar -, todos conheciam as minhas ideias, que estão expressas em livros, palestras e também no meu ativismo. Eu tenho um pouco essa proposta de vida. Imagino que fui eleita por conta disso ou sabendo-se disso. É o que eu quero tentar imprimir na minha passagem pela ABL. 

SV: Que mudanças você destacaria no perfil da ABL entre a inserção de Rachel de Queiroz, a primeira mulher a se tornar imortal, e o seu ingresso, em 2024? O que ainda precisaria ser mudado? 

LS: Acho que eu já respondi a essa pergunta, mas vou refraseá-la. A questão feminina, o lugar da mulher e os feminismos no plural – porque são feminismos mesmo, muito diversos – têm ganhado mais cena, mais importância, mais protagonismo na agenda brasileira. Mesmo assim, nós sabemos que essas são também – eu me refiro às mulheres – maiorias minorizadas na representação, porque as mulheres são uma maioria na população brasileira, e mesmo assim, não têm uma representação, um protagonismo de fato em relação à presença, à formação e à intelectualidade. Isso vem mudando: as mulheres estão conquistando – conquistando, porque ninguém ganha – mais lugares em posições de protagonismo em instituições públicas e privadas. Mas, mesmo assim, nós sabemos que não a contento, não de uma maneira equilibrada ainda. Eu acho que a luta continua; o Brasil é ainda um país campeão em feminicídio. Quando eu falo em feminicídio, eu me refiro a crimes contra o corpo da mulher, propositadamente contra o corpo feminino. E também campeão em transfeminicídio. Esse cenário mudou muito desde que Rachel de Queiroz foi eleita. Eu acho que esse ativismo feminista ganhou uma escala e uma proporção muito grande. Acho, inclusive, que a minha eleição é também fruto dessa pressão pela entrada de mais mulheres na Academia.  

SV: Como você avalia o atual cenário de atuação das mulheres nas produções intelectual, artístico-literária e científica no Brasil? 

LS: Penso que as mulheres estão ganhando uma cena, um momento muito grande nas produções intelectual, artística, literária e científica. O reconhecimento ainda está aquém, mas o crescimento é visível. Eu participo de um grupo de mulheres na ciência, e é impressionante. Eu vou acompanhando a produção das mulheres e vejo como essa produção está escalonando. Mas, para que isso aconteça de verdade em todas as áreas, nós precisamos também de programas sociais que deem conta dessa jornada dupla, tripla, das mulheres, que ajudem as mulheres brasileiras a estarem com seus filhos e tudo mais, mas terem a assistência dos maridos, da família, do Estado, para que essa participação seja ainda mais plena. 

Eu sempre brinco que sou pessimista no varejo e otimista no atacado… Então eu acho que vamos conquistando a cada dia novos lugares e ampliando essa nossa agenda de direitos. Em uma democracia é assim mesmo: os direitos são sempre incompletos. Cabe a nós ampliá-los e fazermos com que caminhemos para frente, e não no “passo do caranguejo”, um pra frente, dois pra trás… 

Muito obrigada! 


Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da USP. É autora, entre outros, de ‘Retrato em branco e negro’ (1987), ‘O espetáculo das raças’ (1993), ‘Racismo no Brasil’ (‘2001), ‘As barbas do Imperador’ (1998, Prêmio Jabuti/ Livro do Ano), ‘A longa viagem da biblioteca dos reis’ (2002), ‘O sol do Brasil’ (2008, Prêmio Jabuti / biografia 2009), ‘Brasil: uma biografia’ (com Heloisa Murgel Starling; 2015) e ‘Lima Barreto triste visionário’ (2017). Coordenou, entre outros, o volume 4 da ‘História da Vida Privada’ no Brasil (1998, Prêmio Jabuti / Ciências Humanas 1999) e a ‘História do Brasil Nação Mapfre/ Objetiva’ em 6 volumes (Prêmio APCA, 2011). Foi curadora de uma série de exposições: ‘A longa viagem da biblioteca dos reis’ (Biblioteca Nacional, 2002), ‘Nicolas-Antoine Taunay e seus trópicos tristes’ (Museu de Belas Artes Rio de Janeiro, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2008), ‘Histórias mestiças’ (2015), ‘Traições: Nelson Leirner leitor de si e leitor dos outros’ (Galeria Vermelho, São Paulo, 2015), ‘Histórias da infância’ (MASP, 2016), ‘Histórias da sexualidade’ (MASP, 2017). Desde 2015, atua como curadora adjunta para histórias e narrativas no MASP e é colunista do jornal Nexo.

Entrevista por: Sérgio Augusto Vicente

Doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade. Dedica-se a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG). Possui experiência em pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural em museus – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos e oficinas. Entre os anos 2022 e 2023, integrou a equipe curatorial de três grandes exposições que reabriram o Museu Mariano Procópio integralmente aos públicos, com novas abordagens historiográficas e narrativas expográficas. São elas: 1. Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação; 2. Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio; 3. Villa Ferreira Lage (ambientação da residência de uma família da elite senhorial brasileira do século XIX). Desde 2020, atua como escritor da revista Trama Bodoque: arte, cultura e criatividade (ISSN 2764-0639) e, a partir de 2022, também passou a atuar como membro do conselho editorial do referido periódico semanal. 


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