A temática indígena no circuito expositivo do museu Mariano Procópio

Os museus são instituições sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, que adquirem, conservam, pesquisam, interpretam e comunicam, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação e lazer, testemunhos materiais e imateriais dos povos e seus ambientes. Como produtores de conhecimento e espaços não formais de educação, os museus têm outra forma de comunicar e educar, baseada nos objetos e na materialidade. 

Tais instituições dispõem objetos para compor um argumento crítico. Logo, a exposição/narrativa constitui um ato comunicativo, baseado numa determinada concepção de história e memória. Isso mostra que os itens expostos, e também o modo como são ordenados e arranjados, comunicam significados e evidenciam os contextos históricos nos quais se inserem. 

Tomando como ponto de partida tais considerações, o objetivo do texto é realizar alguns apontamentos sobre a presença da temática indígena na exposição “Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio”. Inaugurado no dia 03 de março de 2023, no segundo andar do prédio Mariano Procópio, também conhecido como Anexo, o circuito expositivo, formado por dez salas, contempla aspectos das trajetórias e das práticas colecionistas de Alfredo Ferreira Lage, fundador do Museu Mariano Procópio, e da própria instituição. 

Observa-se a temática indígena nas salas 3, 6, 7 e 10, bem como na passarela, responsável por ligar a ala direita da edificação à ala esquerda. A terceira sala do circuito aborda os chamados “gabinetes de curiosidades”, concepção de museu norteadora das práticas colecionistas de Alfredo Lage, marcadas pelo ecletismo e enciclopedismo. Essa sala aborda a organização dada por ele às suas coleções, divididas em sete seções: 1) Mineralogia e diversos ramos das ciências naturais; 2) Etnografia; 3) Medalhas e gravuras; 4) Autógrafos; 5) Mobiliário e objetos históricos e antigos; 6) Belas Artes; 7) Cerâmica. Nessa sala, um remo indígena foi exposto com o intuito de exemplificar os objetos que compunham as coleções etnográficas de Alfredo e do museu. A legenda não apresenta maiores informações sobre o item, uma vez que a instituição não as possui. 

Já na sala 7, que versa sobre a influência feminina nas coleções, verifica-se a presença indígena nas reproduções de fotografias e cartão-postal que retratam povos originários do Brasil. Essas imagens pertenceram à Amélia Machado Cavalcanti de Albuquerque, viscondessa de Cavalcanti. Dona de uma coleção significativa tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, doou grande parte dela ao museu criado por Alfredo, seu “primo-irmão”. Também na passarela é possível observar a reprodução de uma fotografia retratando indígenas. Inicialmente plotada para compor uma galeria de retratos do povo brasileiro, a qual faz parte da exposição “Rememorar o Brasil: a independência e a construção do Estado-nação”, inaugurada em setembro de 2022, no contexto das comemorações do bicentenário da independência do Brasil, a imagem integra, ainda, a “Fios de Memória” por ser compreendida como um item do colecionismo característico do final do século XIX e início do século XX. Nesse espaço, assim como nas salas 3 e 7, os indígenas são representados como um dos temas de interesse das práticas colecionistas da elite oitocentista que, sob a perspectiva do “exótico”, os compreendiam como “tipos humanos”, distantes e a-históricos. 

Os indígenas ainda se fazem presentes na sala 6, onde encontram-se pinturas históricas referentes ao bandeirantismo. Se em outros momentos essas obras compunham a narrativa sobre o período colonial e as ações dos bandeirantes no sentido de “desbravar” o Brasil, agora elas são expostas em uma sala que trata de um tema de destaque na coleção de Alfredo Ferreira Lage, qual seja: a arte brasileira. 

O acervo apresentado nessas salas permite diálogos, reflexões e problematizações sobre a representação dos indígenas ao longo do tempo e a concepção que, ainda hoje, grande parte da sociedade brasileira possui dos povos originários. Desconstruir ideias relacionadas ao “evolucionismo social”, trabalhar as histórias indígenas para além do período colonial brasileiro e possibilitar reflexões sobre a historicidade da cultura são alguns dos desafios apresentados aos museus na atualidade. Daí a importância da sala 10, que se refere ao papel dos museus na contemporaneidade. 

Ao abordar a temática indígena, essa sala busca atestar a presença dos povos indígenas no Brasil contemporâneo, deixando claro que “índio” não é “coisa” do passado. Se, de um lado, observamos uma urna funerária datada do período pré-colonial – objeto que aponta a existência desses povos no território como anterior à chegada dos europeus nas Américas –  de outro, verificamos, por exemplo, a exposição das bonecas Karajá, chamadas ritxoko, ainda hoje produzidas pelas mulheres dessa etnia e registradas como patrimônio cultural do Brasil em 2012, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

Além dos itens Karajá, na sala encontram-se expostos objetos oriundos das etnias Guarani-Kaiowá, Fulni-ô e Waiwai, os quais foram inseridos ali com o intuito de indicar a diversidade dos povos indígenas do Brasil, deixando claro que “índio” não é tudo igual. Ao sinalizar o local de origem dos objetos etnográficos, provenientes de Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Tocantis e Pará, as legendas revelam a presença de etnias indígenas em diferentes estados do país. Elas também fornecem informações sobre a procedência desses itens, possibilitando uma melhor contextualização de sua incorporação ao museu e contribuindo, assim, para reflexões sobre o quanto há de “história” em cada objeto: qual é sua origem? Qual foi o seu uso? Foi elaborado por quem? Para quem? Como ele chegou ao museu? Por quê? De que modo ele contribui para a construção do conhecimento e a adoção de uma postura crítica e reflexiva? Qual a sua relação com a diversidade e as múltiplas identidades? Nos museus, os objetos perdem o valor de uso para se transformarem em documentos, ou seja, em suporte de informações sobre as diferentes sociedades e sua historicidade. 

Se nas salas anteriores os indígenas foram inseridos na narrativa expográfica para “contar a história” das trajetórias e do colecionismo de Alfredo Lage e do museu, a última sala do circuito deixa claro que as questões indígenas são problemáticas museológicas do presente. Como instituições de preservação, pesquisa e comunicação, os museus têm a responsabilidade de provocar o debate sobre as temáticas indígenas com os mais diversos grupos, não apenas produzindo conhecimentos sobre as populações originárias, mas participando o conhecimento produzido por elas. 

A exposição “Fios de Memória” revela os primeiros passos dados pelo Museu Mariano Procópio em direção ao desenvolvimento de ações que promovam discussões em torno dessas temáticas e busquem a aproximação das sociedades indígenas e não indígenas, objetivando o equilíbrio de poder e a inclusão participativa e colaborativa desses grupos nas representações e narrativas museais, de modo que outros e diversos “fios” sejam integrados às “teias” de histórias e memórias que formam o museu. 

Remo indígena (parede direita) exposto na sala 3, que aborda os chamados “gabinetes de curiosidades”. Fotografia: Priscila Pinheiro. 
Galeria de retratos do povo brasileiro, localizada na passarela. Fotografia: Priscila Pinheiro. 
Pintura histórica exposta na sala 6, que trata da arte brasileira nas coleções de Alfredo Lage e do museu. Fotografia: Priscila Pinheiro. 
Parte do núcleo que aborda a temática indígena, na sala 10. Esse espaço trata dos desafios e do papel dos museus na contemporaneidade. Fotografia: Priscila Pinheiro. 

Referências: 

LIMA, Leilane Patrícia de. A temática indígena em museus: questões sobre a diversidade cultural e os desafios para a colaboração indígena. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 10, nº 19, jan./jun. 2021, p. 259-278. 

PINHEIRO, Priscila da Costa. Programa de índio? Reflexões sobre museus, narrativas e memórias indígenas. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Cultura e História dos Povos Indígenas). Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2016. 

RAMOS, Francisco Régis Lopes Ramos. A danação do objeto: o museu no ensino de História. Chapecó: Argos, 2004. 


Priscila da Costa Pinheiro é graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Cultura e História dos Povos Indígenas pela mesma universidade. É professora da Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora. Dedica-se ao processamento técnico do acervo bibliográfico e documental do Museu Mariano Procópio, bem como à preservação, pesquisa histórica e difusão cultural do acervo da instituição. 


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