O culto do amor e do sofrimento na modernidade – A Sofrida Poética de Frida Kahlo

Resumo: Este estudo é, antes de mais nada, concebido teórico e poeticamente pautado no conceito de amor, sofrimento e a condição do artista moderno como sofredor exemplar, assumindo como base as formulações crítico-literárias de Susan Sontag que reconhecem no pensamento moderno a concepção do eixo relacional entre amor e sofrimento como estilística predominante na produção artística moderna. Tomando como referência três obras da artista moderna mexicana Frida Kahlo, o presente estudo busca fomentar a percepção estética, poética e conceitual de seu fazer artístico, incorporando elementos que tocam na temática do amor, do sofrimento e da condição do artista enquanto fruto de seu tempo. 

Palavras-chave: arte moderna; amor; crítica de arte; sofrimento; Susan Sontag. 

1. O artista como sofredor exemplar 

A modernidade e seus modernismos, no plural, instigaram uma fecunda produção artística em suas mais variadas concepções estéticas, formais e conceituais, dentre as quais se destacam “ismos” que estruturam projetos de uma época que se colocava à frente de seu tempo.  

Na primeira década do século XX, surge na Alemanha um movimento artístico que se auto denominava expressionismo, a partir de duas diferentes escolas chamadas Die Bruck (A Ponte) em 1905, que tinha a sua frente Fritz Bleyel e Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) em 1911, tendo como principais expoentes Wassily Kandinsky e Franz Marc. Ambos os grupos se apoiavam na gestualidade dos traços, na paleta de cores fantasmagóricas e na angulação das formas que compunham em sua totalidade uma perspectiva dos horrores vividos pela guerra, dos sentimentos mais íntimos do ser humano e de como este se relacionava com o espaço em que estava inserido e o tempo ao qual pertencia, ainda que deslocado nessa ruptura histórica, filosófica e conceitual a qual chamamos de modernismo. 

Não tardou para essas escolas cruzarem o Atlântico e desembarcarem nas Américas, influenciando a produção artística de toda uma geração. Para muitos especialistas e historiadores da arte, a obra da artista mexicana Frida Kahlo está repleta de influências surrealistas. Contudo, agrada-me destacar sua verve expressionista, ainda que não em aspectos formais, mas sim poéticos, retratando seu sofrimento de maneira objetiva ou metafórica, concreta ou abstrata, tocando em temas que perpassam a condição existencial entre vida e morte. É situada nesse “entre” que Frida incorpora em suas pinturas cores vivas que aludem à cultura mexicana, figuras próprias de seu tempo, mas sem deixar para trás o sentimento de quase morte, as dores que a atormentavam e o doloroso amor que a artista alimentava pelo também artista Diego Rivera. Todos esses pontos norteiam e culminam em dois elementos essenciais no que tange sua obra: o amor e o sofrimento.  

O sofrimento na obra de Frida é um componente poético que requer um olhar sensível e minucioso para com o seu trabalho e que surge, muitas vezes, a partir do amor pela sua pátria, por seu marido, pela arte e/ou pelo sofrimento físico que um acidente de bonde lhe causara, por abortos que sofrera e pela dor de amar alguém que não correspondia ao seu sentimento e suas expectativas.  

Por este ângulo, gostaria de olhar as obras de Frida Kahlo a partir desse binarismo frenético e sofrido que ora se aventura pelo amor, ora pelo sofrimento, tornando a artista, nas palavras de Susan Sontag (2020, p. 61) uma “artista como sofredora exemplar”. 

2. O culto do amor e o culto do sofrimento 

A escritora Susan Sontag (2020) estabelece um diálogo crítico de forma majestosa ao se debruçar sobre os cadernos do autor Cesare Pavese, atribuindo a este, bem como os artistas modernos, o título de “sofredor exemplar”. 

É literalmente desnuda que a encontramos na obra Meu Nascimento1 (1933), em uma cama, com a cabeça de um recém-nascido morto rasgando-lhe a vagina e banhando o lençol da cama em sangue. Os abortos que sofreu – foram 3 – são temas recorrentes e integram muitas de suas pinturas, sempre de maneira crua e sem romantização, desvelando a dor de perder um filho e dessa relação entre vida e morte que se dá no ato de nutrir amorosamente uma gestação, símbolo da vida, e na perda sofrida desse alguém que já integrava a vida da artista e, ainda que morto, passou a viver na memória de Frida. Mais uma vez, a artista se encontra no “entre” vida e morte, amor e sofrimento. 

Segundo Sontag, “para a consciência moderna, o artista (substituindo o santo) é o sofredor exemplar”. Frida encarna essa condição de sofredora e um exemplo profundo no qual isso se reflete é a obra Coluna Partida 2 (1944) que exprime na tela toda a dor física da artista decorrente de um acidente de bonde, ainda jovem. Nessa tela, ressalta-se o sofrimento como tema central em suas mais variadas formas pictóricas. A pele cravejada por pregos, o ventre aberto exibindo a coluna partida em várias partes. Aqui, a artista faz referência a uma longa coluna grega, os olhos compenetrados encaram o espectador com altivez e se mantém firme em sua postura ereta, ainda que com olhos cheios d’água.  

Figura 1. Meu Nascimento, 1933 – Frida Kahlo. Óleo sobre tela. Fonte: <https://www.todamateria.com.br/frida-kahlo/> Acesso em: 28 mar. 2021 
Figura 2. Coluna Partida, Frida Kahlo, 1944 – Óleo sobre tela. Fonte: <https://medium.com/@aneilef/a-coluna-partida-de-frida-kahlo-2c10be8aa48e> Acesso em: 28 mar. 2021 

Assim como na Europa, o México recebe fortes influências religiosas por parte dos colonizadores espanhóis que introduzem imperativamente o catolicismo no país, resultando em um forte sincretismo religioso e cultural que se estende na cultura mexicana até os dias de hoje. Para Sontag, o amor no Ocidente pode ser entendido como símbolo de sofrimento, posto que a referência religiosa máxima no cristianismo encontra na figura de Jesus de Nazaré o sofrimento como forma de amor. Segundo a autora (2020, p. 71) “O culto do amor no Ocidente é um aspecto do culto do sofrimento – o sofrimento como supremo sinal de seriedade […]”. Portanto, torna-se natural conferirmos ao sofrimento uma conotação positiva, ainda que atrelada a um sentido negativo numa chave de entendimento mais aprofundada. 

Seja no amor fraterno em convívio coletivo ou no amor romântico monogâmico entre dois parceiros sexuais, vislumbramos uma parcela dessa condição a qual estamos sujeitos nas relações sociais na obra de Frida. Quando pinta Diego e Eu 3(1949), a artista se autorretrata mantendo seu olhar firme, distante e choroso, inserindo um retrato de seu marido e também artista visual Diego Rivera no centro de sua testa, aludindo à forte influência que seu parceiro exerce em sua vida, ainda que isso lhe seja fonte de sofrimento, torna-se figura central que transita no entre amor e dor. 

Figura 3. Diego e Eu, Frida Kahlo, 1949 – Óleo sobre tela. Fonte: <https://br.pinterest.com/pin/337840409533939127/> Acesso em: 28 mar. 2021. 

3. Considerações Finais 

Diante das argumentações aqui suscitadas, nota-se a influência que ambos amor e sofrimento exercem na produção artística moderna ocidental, exemplificadas a partir da leitura de três obras da artista mexicana Frida Kahlo, cuja produção é fonte inesgotável de conotações metafóricas e compreensões estéticas e poéticas. 

O culto do amor como culto do sofrimento a partir da influência cristã no Ocidente, como esclarece Susan Sontag, exerce forte influência sobre a artista, tornando-a o que a autora chamou de artista como sofredora exemplar. As obras de Frida, ainda que lidas na chave do modernismo, levantam discussões que estão para além das que aqui foram apresentadas neste breve recorte com o intuito de alargar as possibilidades de compreensão desse indivíduo cindido que é o sujeito moderno, que opera no “entre” mundos e conceitos. 

Referências Bibliográficas 

AIDAR, Laura. Frida Kahlo: história e obras da pintora mexicana. TodaMatéria, 2019. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/frida-kahlo/> Acesso em: 28 mar. 2021. 

ANJOS, Elienae. A Coluna Partida de Frida Kahlo. Elienae Anjos, 2017. Disponível em: <https://medium.com/@aneilef/a-coluna-partida-de-frida-kahlo-2c10be8aa48e> Acesso em: 28 mar. 2021. 

SONTAG, Susan. O artista como sofredor exemplar. In: Contra a Interpretação. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 


Lucas Rocha É artista visual e arte-educador, pós-graduado em História da Arte: teoria e crítica pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, pós-graduado em Docência em Literatura e Humanidades pelas Faculdades Metropolitanas Unidas e graduado em Artes Visuais pela Universidade Cruzeiro do Sul. Possui como principais linhas de pesquisa crítica de arte, história da arte, estudos culturais e antropologia da arte, possuindo diversos textos publicados nos segmentos mencionados. 


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