Que o tempo é o grande objeto da História é uma verdade firmada. Tal presença assume-se enquanto nossa especificidade, corporifica a identidade do campo e de seus agentes. Essa força medular é o que nos mantém nas infinitas andanças teóricas do que aflige o humano em suas copiosas expectações de finitude e de eternidade. Não seria redundante partirmos da assertiva de François Hartog “a questão do tempo se tornava uma questão forte, um problema: uma obsessão algumas vezes” (2006). Temos como marco o final da década de 1980 como o momento de virada ao estarmos embebidos em um “Presentismo”, uma anomia temporal, ou melhor, uma redução dupla do “espaço de experiência” e do “horizonte de expectativa” (Koselleck, 2006). Esse presente hipertrofiado fora ainda vislumbrado pelas lentes do aceleracionismo do século XXI, em que a categoria de “Atualismo” clarifica o debate da imersão em uma “historicidade em que um presente vazio e autocentrado se relaciona vaga e pragmaticamente com o passado, enquanto o futuro é desejado como reserva para a expansão linear deste presente em constante atualização repetidora” (Pereira; Araujo, 2022).
Vivemos nessa completude acelerada. Em um mesmo hoje acomoda-se de três a quatro “ontens”. Logo, ao falar de História quantos ou de quais “ontens” estamos falando? O esclarecimento primordial reside no fato de que a História não é o passado. Ou melhor, também o é. Mas não apenas isso, trata-se de um passado elaborado. A História, no mínimo, é um argumento, construída pela singularidade do ofício. Então, se se depende de uma ação humana, o tempo se sobrepõe: o do ontem — do passado — e hoje — da História. Então, quando falamos de passado sobre qual ontem estamos falando? A ânsia pelo amanhã, forja-se pela chegada da madrugada ou por um futuro resoluto? Ou melhor, será que ansiamos pelo amanhã de alguma forma? Tais questões permanecerão em aberto, mas balizam o tom das reflexões lastradas no tutano de um historiador do tempo presente. A proposição desse zigue-zague controverso foi intencional, intrinsecamente desambicioso, almejando apenas a constatação caligrafada da confusão que submerge as mentes encapsuladas deste frenesim.
Trata-se de um atropelamento da experiência do homem no tempo que, além dos inúmeros cenários complexificados da política e economia do século XX, contou também com outra grande protagonista: a Internet, e ainda mais, a Web. A velocidade do processamento de informações, o mundo renderizado, disponibilizado no chavão da “palma de nossas mãos”, nos direciona a reflexão acerca da desorientação e dessincronização temporal. Dado a pertinência ensaística, reconhecemos que os fenômenos de digitalização e digitização enquanto mobilizadores de que toda a cadeia de pensamento passa a demandar interdependências. Ou seja, todos os pequenos procedimentos para a construção de algo foram alterados e a naturalização de tais transformações não nos é útil em nenhuma instância. Então, na ação que ousa esperar a reação, nos deparamos com a indagação “the tools make the cook” (Takas, 2011). Se sim, o que nos caracteriza em nossa temporalidade? Pensemos no historiador do hoje; aquele que tem sua rede social e em um clique se informa das atualizações da guerra, do término de um casal famoso e de mais uma catástrofe ambiental. Ele bloqueia o celular. Abre o site da Hemeroteca Digital, lista o periódico, busca as demandas em suas fontes; naquele momento tem acesso ao microuniverso do que era debatido nos periódicos. Uma breve e intensa imersão ao século XIX. Chega uma notificação no celular. Estamos de volta ao século XXI.
A anedota mais simplista do cotidiano já dá conta de ratificar: o gesto do historiador foi alterado. Mesmo aquele que vai aos arquivos reunir suas fontes, não costuma manter-se naquele ambiente por muito tempo; logo se dá a transformação de um documento do século XVII em uma foto, uma imagem digital feita sem flash por um smartphone. Para uma grande parcela, esta etapa ainda é suprimida. Como exemplificamos, muitos documentos já estão digitalizados e o contato com o papel; o ato de colocar luvas, máscara e a leveza da mão que folheia página por página, fora transformada em cliques. Não há, por nossa parte, um apelo idílico a esse “antigo modus”, visto que o acesso a arquivos demanda deslocamentos, permissões e um alto custo financeiro, fatores que podem ser impedidores de um trabalho. Por isso, o acesso a diversas documentações de forma online também é um caminho de democratização da possibilidade de pesquisa. Trata-se tão somente de um reconhecimento da realidade material, das condições do hoje, e nelas, despossamos do trato com as propriedades organolépticas dos documentos históricos.
Ainda assim, há um figurativo, uma estética que remete a um passado distanciado que de alguma forma desembaraça a possibilidade do “outro”, encaminha para este passado não lembrado que assessora no distanciamento que antes era tão essencial à historiografia. Mas e quando estamos tratando de um passado vívido, algo que não apenas nos lembramos, algo que fizemos parte? É dessa relação com o recordado que boa parte dos historiadores digitais tratam. Os gestos, a digitalização, a história das coisas, são possibilidades dentro da História Digital. Assim como, a História das redes sociais, uma historiografia de como as pessoas se comunicavam e quais os meios algorítmicos que possibilitaram tais relações. Ou seja, a análise de um blog do começo do século XXI depende da internet e está internet, mas ela já não é a mesma do hoje. Estaríamos tratando sobre uma outra maneira de se estar e de se expressar na Web, mediada por um outra estrutura organizativa, assim como com um público restrito, dada a dificuldade de conexão brasileira do início do século. “Naquela época” navegávamos na Web; entravamos e saímos; hoje ela nos parece quase intrínseca. Mas ela é mesmo? O que fazíamos depois de sair das lan houses? Quanto pagávamos por 15 minutos de acesso ao mundo inteiro por um monitor tubo em tons amarelados? Alguns de nós ainda se lembram, mas até quando?
Todas essas são camadas, recortes e possibilidades de se fazer História. São os pequenos entrelaces entre vida e ofício, são os rascunhos da concretude antropomórfica entre o historiador e a tecnologia que deve se obstinar pela desnaturalização do que tanto comercializam enquanto naturalmente irremediável. Este ensaio elabora acerca sobre aquele por detrás das laudas que vislumbram o passado. E, talvez, fora de nosso tempo, buscamos no reconhecimento do hoje, um futuro que esteja disposto a se repensar, nos mínimos detalhes.
Bibliografia
BONALDO, Rodrigo. História mais do que humana: descrevendo o futuro como atualização repetidora da Inteligência Artificial. História (São Paulo), v.42, e2023037, 2023.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
PEREIRA, M. H. F.; ARAUJO, V. O passado como distração: modos de vestir a história no neopopulismo brasileiro. Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 25, n. 2, p. 71-88, 2022.
STEINHAUER, Jason. History, disrupted: How Social Media and the World Wide Web Have Chang the Past. Washington: Palgrave MacMillan, 2022.
TAKAS, Sean. The Expert Cook in Enlightenment France. Johns Hopkins University Press; Illustrated, 2011.
Bruna Silva
é doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e mestra em História pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Associada ao Laboratório de História Política e Social (LAHPS) e desenvolve atividades de pesquisa com foco em História do Tempo Presente, História Digital e História Política, atuando principalmente no estudo das direitas brasileiras e a radicalidade ultraliberal.
Assine a nossa newsletter por apenas R$10 por mês e receba mensalmente edições temáticas por e-mail
Assinando nossa newsletter, você contribui diretamente para a continuidade dos trabalhos da Trama e das ações culturais da Bodoque!
Esse espaço bacana de apoio e fomento à cultura pode mostrar também você e a sua marca!
Agora você pode anunciar seus produtos, marca e eventos na Trama em todas as publicações!
Para se destacar em nossa plataforma, você pode escolher de uma a quatro edições do programa de parceria Tramando. Isso significa que todas as publicações contidas nas edições selecionadas irão destacar aqui a sua marca, logo após cada texto e exposição. Os preços variaram de R$ 40,00 a R$ 100.
Basta entrar em contato conosco pelo WhatsApp (32) 98452-3839 ou diretamente na nossa página do Instagram para adquirir seu espaço!
Esse espaço bacana de apoio e fomento à cultura pode mostrar também você e a sua marca!
Agora você pode anunciar seus produtos, marca e eventos na Trama em todas as publicações!
Para se destacar em nossa plataforma, você pode escolher de uma a quatro edições do programa de parceria Tramando. Isso significa que todas as publicações contidas nas edições selecionadas irão destacar aqui a sua marca, logo após cada texto e exposição. Os preços variaram de R$ 40,00 a R$ 100.
Basta entrar em contato conosco pelo WhatsApp (32) 98452-3839 ou diretamente na nossa página do Instagram para adquirir seu espaço!