[EDITORIAL] A sua imagem e semelhança: uma coletânea de reflexões sobre o PL 1904 e os assuntos que o orbitam.  

Organizar uma série e/ou coletânea de textos e reflexões acerca do PL1904 nos pareceu uma atividade de resistência. Antes de voltarmos os olhares para um projeto de lei, meramente, foi necessário ampliar a dinâmica estabelecida, rasgar alguns — muitos — véus e estendermos a observação para um universo gestado, construído, alimentado, retroalimentado e mantido, continuamente, dentro de uma ordem de administração da vida que pauta alegorias e produz um frequente culto aos individualismos, apesar da chamada coletiva de adesão a essa(s) forma(s) de olhar para o mundo. Individualismo é posto, aqui, como um aspecto centralizador e dominante, capaz de subjugar para manter o seu rigor correspondente aos pútridos corações que, todos os dias, levam ao jogo público a proposta de seu domínio. 

Nos últimos anos, a extrema direita voltou ao centro do debate e tem crescido em todo o mundo, alimentando um clima de polarização e representando uma séria ameaça à democracia e aos direitos humanos. Jair Messias Bolsonaro, eleito no Brasil em 2018, Donald Trump, eleito nos Estados Unidos em 2016, Narendra Modi na Índia desde 2014, Viktor Orbán na Hungria desde 2010, Recep Tayyip Erdoğan na Turquia desde 2014, Rodrigo Duterte nas Filipinas desde 2016 e Javier Milei, candidato à presidência da Argentina em 2023, são apenas alguns dos líderes que representam essa onda global. Em cada país, essa nova extrema direita apresenta características próprias, mas opera de forma similar, atacando mulheres, negros, cientistas, instituições públicas, movimentos sociais progressitas, imigrantes, indígenas e grupos LGBTQIAP+. Em alguns casos, o nacionalismo e o racismo xenófobo prevalecem, enquanto em outros o fundamentalismo religioso é a base ideológica.  

No caso brasileiro, uma das teses centrais para compreender as características da extrema direita atual reside no fundamentalismo religioso, ancorado em um debate moral-conservador. Esses grupos operam de forma orquestrada nas redes, nutrem e defendem a intolerância, além de disseminar notícias falsas em vários grupos virtuais. Segundo a jornalista e doutora em comunicação Magali Cunha, “os grupos conservadores e fundamentalistas fazem uso disso e usam muito bem, instrumentalizando de forma política essa dimensão religiosa”. A religião instrumentalizada serve como alicerce fundamental para a construção da ideologia da extrema direita, conferindo-lhe poder e influência. Essa instrumentalização da fé se intensifica no debate sobre gênero, em que a ultradireita constrói uma falsa dicotomia entre “ideologia de gênero” e “valores tradicionais”, utilizando a religião para embasar sua oposição conservadora-reacionária.  

A expressão “ideologia de gênero” surgiu como um termo pejorativo para desqualificar os estudos de gênero, um campo interdisciplinar que estuda, investiga e produz conhecimento e reflexão, buscando contribuir para a superação das desigualdades de raça, classe e gênero, além de combater violências e discriminações. Essa expressão ganhou força no debate político e, ao longo da atual conjuntura, vem sendo utilizada de forma estratégica por grupos, indivíduos e movimentos da extrema direita atual. Segundo Peniche (2021), “de um ponto de vista conceitual, a expressão representa uma tentativa de ressignificação assente na menorização e deturpação — consciente e deliberada — de uma teoria (e não ideologia) que, dito de forma breve e simplificada, procura explicar que as desigualdades não são naturais, mas o resultado de processos sociais, culturais e econômicos que estruturam relações sociais de poder desiguais, ocupando nelas as mulheres um lugar subalterno e depreciado”. Nessa perspectiva, o debate teórico de gênero surge como um elemento disruptivo da ordem social vigente, na medida em que questiona a naturalização das desigualdades de gênero. Ao desmantelar o caráter essencialista das disparidades entre homens e mulheres, esse debate expõe a dominação masculina como uma construção social, e não como um determinismo seja entendida como natural.  

No contexto brasileiro, a expressão “ideologia de gênero” tornou-se apropriada por grupos de direita radical como elemento central do discurso denominado “marxismo cultural”, configurando-se como mais uma importação das estratégias discursivas da direita atual. Conforme Mirrlees (2019), o “marxismo cultural” é um dispositivo político de produção de “ódio interseccional” dentro do discurso da Alt-Right (a nova extrema direita). Enraizados em uma perspectiva patriarcal, branca e cristã, esses grupos extremistas se erguem contra um mundo que, segundo eles, é deturpado pela esquerda, pelo feminismo, pelos movimentos LGBTQIAP+, pelos povos indígenas e por outras correntes de movimentos sociais progressistas. Esse cenário atual lembra muito a série “The Handmaid’s Tale” (“O Conto da Aia” ou “A História de Uma Serva”), da autora canadense Margaret Atwood, no qual esses grupos imaginam e criam um futuro distópico onde a opressão e a privação reinam.  

Em Gilead, uma sociedade distópica moldada por uma rigorosa interpretação da fé cristã, a lei suprema é a “lei divina”. As escrituras, inclusive as leis punitivas do Antigo Testamento, são seguidas à risca, normalizando castigos como mutilações e torturas. Nessa realidade “imaginária”, os direitos humanos são drasticamente reprimidos, com as mulheres suportando o peso da opressão. A República de Gilead floresceu a partir da coalescência de grupos extremistas religiosos. Unidos pela crença de que a América precisava ser “purificada” do pecado e da corrupção, esses grupos formaram uma conspiração sob o nome de “Os Filhos de Jacó”. Movidos por um fervor messiânico, Os Filhos de Jacó orquestraram um audacioso golpe de Estado, atacando simultaneamente a Casa Branca e o Congresso, derrubando o governo dos Estados Unidos e estabelecendo Gilead como sua nova ordem. A história se desenrola na perspectiva de Offred, uma mulher aprisionada na realidade brutal de Gilead. Como parte da classe das “aias”, ela é considerada propriedade do Estado e serva sexual, cobiçada por sua fertilidade em meio a uma sociedade assolada pela esterilidade.  

Embora a ficção transcenda a realidade, frequentemente se inspira em eventos históricos e sociais para escrever sua narrativa. Esse é o caso de “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, que encontra raízes em acontecimentos perturbadores do passado, tecendo um futuro distópico que ressoa com inquietante familiaridade em nosso presente, especialmente no Brasil. No Brasil, a recente tramitação do PL 1904/2024, que visa equiparar o aborto ao homicídio após a 22ª semana de gestação, acende um debate acalorado sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Essa proposta, assim como outras como o PL da Gravidez Infantil e o PL do Estupro, evocam imagens da sociedade distópica de Gilead, onde o controle do corpo feminino se torna um instrumento de opressão. 

E é sob essa constatação, que mantemos o alerta ao pluralizar o debate evocando novas figuras que confrontam, diretamente, noções vendidas como comuns pela extrema direita religiosa e fundamentalista — como exemplo dessa leitura alternativa à fundamentalista, o livro e estudo bíblico Juízes 19: violência contra a mulher por questão de gênero. Uma abordagem a partir da interpretação teológica e histórica, de Areli Cortez (2024) —. Nesse sentido, lançaremos mão de reflexões acerca de leituras teológicas alternativas da bíblia, os usos políticos da religião e tantos outros confrontos que buscam desconstruir o que, como estratégia, tem sido disseminado como denominador comum para identificação dos que são “cidadãos do bem”, logo, “tradicionais”, “conservadores”, “cristãos”, entre outros. Não somente, fez se necessário também recorrer a outros planos discursivos, como as relações de gênero percebidas internamente nesses grupos, como são pautadas, orientadas e se há correlação histórica, portanto, um peso para além de ações palpáveis, em suas mobilizações. Por isso, os leitores também encontrarão reflexões que se subsidiam em comparações acerca do corpo feminino e os contos nos quais se desenvolveu e/ou desenvolve uma noção de repulsa a ele, bem como poderão acessar outras frentes de ataque desses grupos extremistas que já estão em campo, mobilizadas contra mulheres e os seus direitos. 

Uma vez apontado enquanto parte de um projeto político, econômico e social de domínio e subjugação maior, o PL 1904 é visto como uma das muitas ondas que quebram na areia. Uma vez que a sua disseminação mostra um determinado rosto, com características e contornos, há a possibilidade de o identificarmos em outros lugares e frentes de mobilização política, ou seja, a pauta antiaborto não se restringe ao PL mencionado, mas a um conjunto de defesas redesenhadas em instâncias e camadas da sociedade, no plano de tomada de decisões políticas, nos consultórios médicos, nas celas de prisões, nos púlpitos religiosos e, em última instância, nos notórios terminais da vida de meninas e mulheres que não acessam o aborto de maneira segura: uma terra, uma caixa de madeira e a somente da memória do que se poderia ter sido. 

 A sua imagem e semelhança criou, 

 o PL 1904,  

criou. 

Mas não haverá nenhuma a menos. 

Referências: 

MIRRLEES, Tanner. The Alt-Right’s discourse of “cultural Marxism”: a political instrument of intersectional hate. Atlantis Journal, v. 39, n. 1, 2019.  

PENICHE, Andrea. Belas, Recatadas e do Lar: O antifeminismo como arma de deslegitimação da democracia. In: HONÓRIO, Cécilia; MINEIRO, João (Orgs.). Novas e Velhas Extremas-Direitas. 1ª ed. Lisboa: Edições Parsifal, 2021. 

NÓS MULHERES DA PERIFERIA. Como o conservadorismo e o fundamentalismo operam no Brasil. São Paulo, 2021. Disponível em: https://nosmulheresdaperiferia.com.br/como-o-conservadorismo-e-o-fundamentalismo-operam-no-brasil/. Acesso em: 20 jun. 2024. 


Gyovana Machado – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Mestre em História. Pesquisadora associada ao Laboratório de História Econômica e Social com trajetória e experiência nos espaços de confissão protestante. Formada em Seminário Teológico e curiosa nas leituras sobre Teologia Feminista, Teologia da Libertação, Missão Integral e demais veias decoloniais de leitura teológica. Atualmente, pesquisa capelães e capelanias em Minas Gerais colonial. 

Mayara Balestro – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestra em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2021). Pesquisadora associada ao Observatório da Extrema Direita (OED) – Brasil e ligado ao grupo de pesquisa Direitas, História e Memória (DHM), ambos credenciados no CNPq. Tem experiência na área de história, com ênfase em História Contemporânea e História do Tempo Presente, atuando principalmente nos seguintes temas: Nova Direita, Extrema-Direita, Direita Radical, Bolsonarismo e Brasil Paralelo.  


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