Lá em março do ano passado, dei por mim que a pandemia se alastraria longamente entre nós
– hoje, que tomei a primeira dose de uma vacina contra ela, não consigo ainda ver se materializando o ponto de virada marcando um quadrado do calendário deste ano pendurado ali atrás da porta da cozinha –
pensei logo na distância entre mim e o mar. especulei estradas possíveis pra correr e vagar na sorte de encontrar, daqui das montanhas serradas, algumas vistas de vales e alguns banhos de cachoeiras.
mas o mar… o mar tem essa coisa da imensidão salgada, de lágrimas de choros e risos de tantos mil’anos, ressoando profundas colisões das interações cósmicas que nos fazem grão de areia. vale ver como essas ondas vibram pulsam propagam vidas na viagem submarina de Corina escrita lindamente por Aline Valek em seu As águas-vivas não sabem de si. leitura que me levou pro fundinho da ignorância que vivo de mim.
mas o mar foi fazendo falta. a falta, morada. abissal.
até que finalmente, na semana passada, coloquei este corpinho a caminho do mar. uma busca por uns poucos dias privilegiados sem fazer nada. aprendendo a fazer nada. e tentando aprender isso com certa pressa gostosa como as que eu tinha na infância ao ver aquela linha azul-água tocar a linha azul-céu. a vontade de me molhar, imergir, gelar os pés, não dar mais pé, boiar.
trago então um escrito que fui concatenando da memória literária. e que me lançaram imagens boas pra lidar com esse aprendizado indolente de deixar minha alma vazar no mar, ser mar, maior.
curioso como esse imaginário se conecta com poetas que escreviam de Portugal, e são até uns versos que se veem por aí em paredes destacados do resto do corpo de palavras que fazem poemas.
mas faz tempo que um poema inteiro, por só dois versos, está marcado na minha relação com o mar. é da bruxa marinha Sophia de Mello Breyner Andresen, em seu Livro Sexto, de 1962. o título na página é Inscrição, ao que seguem:
Quando eu morrer voltarei para buscar Os instantes que não vivi junto do mar.
apenas. e pra mim foi suficiente pra reverberar muito, até hoje. mas não é sobre o mar, diretamente, o outro poema dela que quero evocar aqui nessa lição de manutenção da alma grande, náufraga, profunda, abundante – diretamente como o mar. é um poema de tempos salazaristas, que conecto com estes tempos de bolsonarismo e pirotecnias da memória do lado de cá do mar atlântico. numa outra página de seu Livro Sexto, Sophia corta o papel assim:
O VELHO ABUTRE O velho abutre é sábio e alisa as suas penas A podridão lhe agrada e seus discursos Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
como não pensar em mar, almas pequenas e poesia portuguesa sem escorregar direto no saudoso Mar Português de Fernando Pessoa, que fala de um nós que não pertenço e até me incomoda, mas finca um sentido de lembrete que busco ler sempre pausadamente buscando dessaturações:
Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena.
sorte nossa também contar com a voz profunda do lado de cá desse mar, a de Conceição Evaristo, sua escrevivência. nela encontro indicações para um caminho marítmo que também é montanha, de fazer agrandar a alma, avivá-la diante das ameaças que a querem apequenar. abrindo sua coletânea Poemas de recordação e outros movimentos:
Recordar é preciso O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos A memória bravia lança o leme: Recordar é preciso. O movimento vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga, mas os fundos oceanos não me amedrontam e nem me imobilizam. Uma paixão profunda é a bóia que me emerge. Sei que o mistério subsiste além das águas.
Tálisson Melo é artista visual e pesquisador da cultura. Doutor em sociologia e antropologia pelo IFCS/UFRJ, mestre e bacharel interdisciplinar pelo IAD/UFJF. Atualmente trabalha com curadoria-pesquisa-edição para um livro sobre poesia visual e poema/processo em trânsitos sul-americanos (financiado pelo Fondo Nacional de Cultura do Uruguai). Publicou com Carolina Cerqueira o livro Mesmo Sol Outro (selecionado pelo Rumos Itaú Cultural, 2018), e com Taonga Leslie a coletânia de poemas A New Road (Nova York, 2021). https://linktr.ee/talissonmelodesouza