Hoje em dia, ser acusado de algum tipo de adesão à “ideologia identitarista” é um risco que assombra o campo político. O uso de pechas como “identitário” para desmascarar ou mesmo ofender alguns movimentos se tornou aquela peça a ser evitada a todo custo – porém, praticada com veemência pelos mais diferentes espectros, indo dos argumentos mais ultrapassados até aos mais intelectualmente sofisticados. Algumas das posturas anti-identitárias podem ser distinguidas conforme suas respectivas retóricas:
– Numa versão mais conservadora, se ouve que “os identitários estão, sabidamente, na esquerda pós-moderna, que se vale de uma renovação da categoria dos oprimidos para privilegiar grupos minoritários como negros, mulheres, gays, trans, e toda sorte de “vitimistas” que querem subverter as leis naturais, com suas hierarquias imutáveis”;
– Do ponto de vista da esquerda mais radical, “o verdadeiro problema de nossa história é que ela já é, tradicionalmente, identitária. Mas o sucesso de sua dissimulação foi tomar-se como não-identitária, e por isso, mais poderosa, pois aposta no uso de sua suposta transparência para criar e aprisionar os minoritários em imagens”;
– No meio acadêmico marxista, a identidade é “mais um produto da indústria cultural. No mercado liberal, a própria ideia de espectros identitários, contextualizações e individualização é utilizado como esvaziamento de lutas verdadeiramente cruciais, criando uma nova moda, evidentemente oportuna para a lógica do consumo no qual “diversidade cultural” significa ampliação do mercado”;
– Por fim, aqueles mais alertados aos problemas da identificação no campo psicanalítico acabam por lembrar que “toda organização em torno da identidade só pode agir ao modo irracional de uma psicologia de massas¹. A identidade pode existir como ficção simbólico-imaginária, mas o excesso de positividade contida na afirmação da identidade leva, inevitavelmente, à alienação e ao totalitarismo”.
É claro que, tendo em vista a discussão que gostaria de suscitar, bastará termos alguns argumentos como esses em mente, uma vez que o propósito aqui será mostrar – de um modo um tanto quanto modesto – o quanto a pecha do identitarismo pode sustentar um desvio ante o horizonte emancipatório; quando a fobia da identidade insiste em imobilizar a crítica.
Quando Lacan fala a respeito da fraternidade, ele diz que ela se baseia num gesto segregador: “na sociedade, tudo o que existe baseia na segregação, e em primeiro lugar, na fraternidade”². Mas o que Lacan quer dizer com isso? É que, para ele, todas as formas de fraternização seriam reconhecidas através daquilo que se nega, e não daquilo que se afirma. Em outras palavras, é como se a questão não fosse a gestão do centro, mas o controle das margens, daquilo que não pode entrar. É quando você segrega algo, quando você mantém um objeto de fora, que uma fraternidade passa a subsistir.
Agora voltemos à questão do identitarismo de maneira mais objetiva: mas qual seria a palavra final sobre o “mal identitário” entre nós? Bem, se trouxe aqui dois insights psicanalíticos, é porque acredito que tais intervenções retratam o limite de nossa abordagem para o problema emancipatório atual. Pois, por um momento, parecemos estar diante de uma luta em que a própria crítica cria os limites imaginários de sua intervenção. Esse é o atestado de que o próprio liberalismo cooptou a gramática política com sua gestão do medo: medo de ser radical, medo de ser fisgado pelas armadilhas suntuosas da identidade.
Mas se há algo a aprender com tais limites, é a lição de que precisamos operar com as condições negativas de nossas identidades; operar com vinculações estratégicas, de modo que a afirmação de uma condição não crie necessariamente o objeto que represente o excesso do sujeito, elencando um grupo segregado. Aqui a própria psicanálise deve reconhecer sua modesta posição política: não simplesmente interpretando o desejo das organizações, militâncias e coletivos a partir de sua psicologia de massas e de segregação, mas permitir-se castrada, operando junto com outras experiências de coletividade.
Por fim, poderíamos dizer que o problema atual, não é o risco eminente de ser identitário. Nosso maior risco é cegar para o fato de que uma identidade nunca representa uma totalidade. Ela é uma bricolagem que sempre se desmente, e não há quem saiba melhor disso do que aqueles a quem são impostos tais destinos, a saber, os racializados, os expatriados, a comunidade LGBTQIA+… Contudo, aqui, a afirmação da identidade possuirá outro sentido: quando movimentos como esses se afirmam a partir da identidade, não é que seu destino foi reforçado; mas, pelo contrário, uma lacuna para a enunciação do sujeito se abriu. A identidade, aqui, opera como contradição produtiva: ela passa a cumprir uma função paródica, uma sátira. Leiamos Fanon!
NOTAS
¹FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Eu (1921).
²LACAN, J. O seminário – livro 17: o avesso da psicanálise (1969/1970).
Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.