Apesar de ter nascido em Juiz de Fora, cresci em outra cidade e só voltei fixamente para meu território de origem na adolescência. Nunca reclamei, porque eu e minha mãe vínhamos mensalmente visitar a família. E por mais que eu amasse o casebre da minha vó, os gatos correndo soltos no quintal, as plantas cheirosas do jardim e as fornadas de broa, me lembro vividamente das ruas. Pegávamos o ônibus ainda vazio e antes de sair do bairro, todos os bancos já estavam ocupados. Os morros e as conversas e o sotaque. Tudo ensaiava casa.
Saltávamos na Getúlio e, enquanto minha mãe resolvia o que precisava, eu me admirava com o tamanho do calçadão da Halfeld, me divertia com as vitrines e fazia perguntas que ela não sabia responder. Íamos a um escritório em um dos prédios na Rio Branco para encontrarmos minha madrinha. Ela nos recebia no corredor e quando os outros funcionários pareciam distraídos, nos levava para o refeitório. Eu comia pão com manteiga e tomava café com leite enquanto ouvia as fofocas das duas. Tudo imitava colo.
Por mais que fôssemos fiéis em nossas visitas mensais e sempre caminhássemos pelos mesmos exatos lugares do centro, eu achava que nunca decoraria a ordem e a localização das galerias; o que, no fim das contas, era mais desejo do que certeza, porque tudo parecia novo e um grandioso mistério. Quando atravessávamos para a São João, o sol queimando os olhos sem arder calor, certamente haveria alguma colega antiga de minha mãe coincidentemente passando. Elas ficavam ali, no meio da rua mesmo, as pessoas desviando, a conversa alegre, eu dançando ao redor. Tudo cutucava saudade.
Quando vim para morar, só me senti plantada no território ao ter firme noção da localização da maioria dos bairros e do mapa das galerias. Andando sozinha pelas primeiras vezes, ainda bem nova, precisava perguntar o caminho para minha mãe. Me dirigia a passadas apressadas, o trajeto decorado ecoando em pensamento e a rua sem nem sequer ter chance de me ver leve da mesma forma que eu era na infância. Tudo ardia reconhecimento.
Depois de bons anos, criamos intimidade, eu e a cidade. Guardamos segredos e memórias, lutas e histórias, decepções e sonhos. Se antes me encantava a arquitetura, hoje me deslumbra a vida dentro dos prédios e os pés percorrendo o calçadão. Caminhando sem compromisso pelas mesmas galerias, plantadas nos mesmos lugares há anos, mas já tão diferentes, faço o movimento similar ao de minha mãe em esbarrar com alguns passados. Encontro amigos que já não são mais e brinco, por alguns minutos de conversa, de imaginar como está esta outra vida que, em outro tempo, era tão encostada na minha. Sinto o abraço e o corpo reconhece no cheiro, o lugar que habitei e me despedi sem saber. Tudo em movimento.
O escritório onde tanto comi pães de sal com manteiga e tomei clandestinos cafés com leite sentada na bancada agora é uma clínica médica. A cidade onde nasci é diferente da cidade onde passeei e a que moro também é outra. São todas chão de tímidas passagens das fases da vida, engenheiras de reencontros em fermentação. Tudo, finalmente, casa.
Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia, escritora teimosa e acredita nas faíscas do afeto através do @fazerafetar