O CORPO ENQUANTO OBJETO ARTÍSTICO
O corpo é, para Medeiros, o objeto mais representado na história da imagem, desde as pinturas parietais até a internet. Oscilando entre o erótico e o obsceno, o corpo sempre foi privilegiado: ora como representação de todos os males, ora como expressão do humano.
David Leddick (2015), em sua pesquisa diacrônica sobre a representação do corpo masculino na fotografia, declara que, no século XIX, era quase impossível ver um homem nu na fotografia, com exceção de imagens de fisiculturistas, que eram divulgadas na intenção de mostrar a importância da dieta e do exercício físico para atingir o corpo ideal, logo, não havia intenções artísticas. No final do século, haverá um fomento dessas imagens, porém com outros propósitos. O autor afirma que os modelos vivos eram muito custosos para os jovens pintores praticarem seu ofício; portanto, diversas fotografias de homens desnudos agachados, levantando pesos, lutando com outro homem, passaram a circular pelos estúdios de pintura.
A princípio, essas imagens tinham sua circulação limitada aos estúdios e com fins meramente acadêmicos. Serão as fotografias feitas pelo barão Wilhelm Von Gloeden, com alta carga de homoerotismo – adolescentes nus ornados com coroas de flores em ambientes que evocavam a Grécia Antiga –, que se desvencilharão desses ambientes convencionais e começarão a ser vendidas aos turistas na Sicília. É, provavelmente, a primeira vez que as fotografias da nudez masculina não são reduzidas a fins científicos ou de estudos para a pintura. No início do século XX, esse mercado começa a crescer, e fotógrafos tiveram de criar formas de se camuflarem para possibilitar a circulação das imagens homoeróticas e suprir a demanda que crescia cada vez mais. Essa camuflagem se via necessária à época, pois a nudez ainda era enxergada com pudor, em especial a masculina. O fato de alguém possuir imagens de rapazes nus era um indício de uma possível homossexualidade, identidade que poderia prejudicar carreiras e vidas. Mulheres dificilmente se tornavam consumidoras de tais imagens, em função das diversas restrições impostas ao gênero feminino. Por isso, fotografias exibindo a sensualidade masculina eram vendidas no mercado negro, algumas ainda eram exibidas em mostras ocasionais, porém sempre underground.
É interessante destacar que, mesmo com toda a dificuldade de se expressar dentro de uma sociedade que encarava a nudez masculina como algo indecoroso, imoral e obsceno, brechas foram abertas e os fotógrafos encontraram formas de driblar esses obstáculos e explorar a potência artística que o corpo possui. Adelaide de Oliveira (2012), em sua pesquisa sobre a fotografia homoerótica no Pará, recorre às definições de Antonio Costella (2002, p. 14) sobre o que é arte: “A obra de arte, como entidade física, é inteira e única”, e de Dana Arnold (2008, p. 21): “Assim, o cânone é a obra de arte tida como da mais alta qualidade por indivíduos influentes – em especial os conhecedores de arte”. A partir desses conceitos, Oliveira conclui que o corpo pode ser considerado como o próprio objeto artístico em si:
Ora, se pensarmos que cada corpo é único, que mesmo irmãos gêmeos univitelinos – os quais trazem no corpo semelhanças físicas e biológicas capazes de confundir até o parente mais próximo – não possuem a mesma impressão digital e, no decorrer da vida podem modificar completamente o corpo inicial, corpo e obra de arte, portanto, são sinônimos. E ainda se uma obra precisa ser referendada por determinado grupo para ser considerada um cânone, será que o corpo, para ser considerado belo, também precisa da aprovação de um grupo? Não restam dúvidas que, neste quesito, corpo e arte padecem das mesmas críticas. Para que um corpo, na pós-modernidade, seja considerado belo, são necessários a idolatria de “especialistas” e os holofotes da mídia e da publicidade (OLIVEIRA, 2012, p. 23).
Dessa forma, o corpo pode ser tratado como objeto artístico sem nenhuma intenção artística. Quando pensamos no corpo como uma obra de arte, imediatamente nos vêm à mente imagens de corpos soberanos, perfeitos, no auge de sua beleza. Entretanto, é preciso entrever que a metamorfose do corpo em objeto de arte pode ser percebido na experiência estética na vida cotidiana: a maneira de nos prepararmos, de nos arrumarmos, de nos maquiarmos, de nos vestirmos, do costume de nos olharmos no espelho frequentemente para averiguarmos nossa aparência e trejeitos, o surgimento de rugas e o modo como vemos os demais são sinais incontestáveis de uma preocupação cotidiana com a estética de nosso corpo (JEAUDY, 2002 apud OLIVEIRA, 2012).
A escritura homoerótica a qual falamos deve ser pensada não como uma simples “técnica” a ser utilizada na obra de arte, mas como um elemento crítico, um caminho, uma possibilidade de se refletir a arte, e o principal fator de articulação dessas questões é a própria linguagem, potencializador para a construção de diversas concepções. Essa escritura, por exemplo, se sobressai na obra do artista Andy Warhol que, utilizando a máquina Polaroid, tornou-se conhecido por seus retratos de nus, masculinos e femininos, que são conhecidos como o centro do trabalho do artista e que serão explorados no próximo capítulo do texto.
Ihan de Abreu Leite Peixoto é graduando em Letras Português/Espanhol da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Grupo Visada.