Há transformações que são atentados.
Catherine Malabou
É preciso aceitar introduzir a aléa
como categoria na produção dos acontecimentos.
Michel Foucault
A figura do guitarrista rockeiro anos setentista que, mesmo tendo sofrido diversas mutações ao longo das décadas, arrebatava mentes e corações com o solo perfeitamente posicionado no clímax da música fez, inevitavelmente, com que os solos de guitarra virassem em seguida uma espécie de clichê musical, assim como o susto no espelho do banheiro dos terrores hollywoodianos. Não é preciso sensibilidade privilegiada para perceber que a indústria cria seus excessos ruins, forçando combinações que não existiriam sem a demanda de um Outro que ninguém sabe ao certo o que quer.
Mas a lição frankfurtiana, que não podemos perder de vista, é que a chamada indústria cultural é uma máquina que perverte estéticas e faz passar pelo seu filtro toda sorte de objetos, transformando o ímpeto do Capital de reprodução compulsória de técnicas, modelos e formas num mantra[1]. É por essa razão que o excesso ruim da indústria não se limita aos ingênuos casos dos solos de guitarra, mas incluem atividades mais conceitualizadas como, por exemplo, a ideia de pensamento crítico.
Vejamos o lugar comum em que estamos atualmente, no qual identificar como valor necessário de um pensamento sua natureza crítica é quase regra em qualquer ambiente acadêmico. Acontece que pensamento crítico se tornou um tipo de selo apriori, um imperativo cujos efeitos do incômodo deixaram de ser o critério de mensurabilidade e passaram a condicionar o próprio limite crítico de um pensamento. Para isso, basta se perguntar o que aconteceria se as categorias de crítica até então utilizadas finalmente realizassem sua ambição de desmantelar estruturas de poder e não fossem mais necessárias – esse futuro é realmente desejável pelos acadêmicos críticos de hoje?
Mas se a crítica possui a marca da imprescindibilidade é porque a gramática do nosso tempo consente a necessidade de um inconformismo permanente. Talvez isso aproxime a ideia de crítica ao status de crise, outro consenso do imaginário social a respeito da realidade global que assistimos. A crítica seria, portanto, um esforço de acelerar a crise, torná-la etapa de um estado de coisas insustentável, sinalizando a transição para outra ordem estabilizadora. Criticar implicaria realizar o trabalho do negativo, ainda que isso implique revogar o regime de identidade que situou o movimento inicial da crítica. Mas estar alertado sobre o que representa a crise de um ponto de vista crítico, também é questionar a consistência escalar desse tópico: em certo sentido, a permanência de uma crise já é o sinal de uma estabilização. Ainda que de forma aparentemente caótica, estar em crise também traduz uma ordem. A questão seria como criticar uma ordem que se apresenta como crítica de si.
A pandemia que eclodiu no ano de 2020 (e vêm se arrastando como pode) foi uma crise que sublinhou com maestria o problema da crítica como compulsão metodológica do metaverso acadêmico. Convenhamos que o mais saturou o ambiente digital para além das lives, meetings e posts de auto-ajuda foi a modalidade das “análises de conjuntura”. A ânsia dos analistas consistiu em elaborar não apenas a mais apressada, mas ao mesmo tempo a mais coerente análise do contexto, de modo que essa pudesse justificar seu sistema de pensamento, há muito já tornado público. O caso mais icônico dessa façanha, o filósofo Giorgio Agamben, que, após criticar as medidas de contenção contra a proliferação do vírus profetizando o mal da “medicina como religião”, chegou a comparar as vacinas como um “novo batismo religioso” curiosamente foi elencado como um representante político dos manifestantes anti-vacina de extrema direita, mostrando que excesso de análise de conjuntura não costuma só criar seus próprios demônios, mas também a sacralizá-los[2].
É em casos assim que a “estetização da política”, para usar o termo benjaminiano, depende do paradoxo do pensamento e da ação: é certo que o pensamento nunca esteve desassociado de uma práxis, e que tal práxis nem por isso deixa de produzir um outro pensamento, mas de que maneira a tarefa de pensar pode mobilizar (hoje) essa estrutura que insiste em catalisar os momentos nos quais entendemos estar mais perto da crítica e mais longe da conformação, quando o que se impõe é justamente o contrário? Se para Benjamin a resposta à estetização da política é a politização da arte[3], é porque existe algo do incômodo que precisa ser preservado como tal no âmago das nossas representações de mundo. Introduzir sem temer a álea nos exercícios de pensamento, sem recusar que dos acidentes mais disruptivos surgem as formas capazes de abismar uma as conexões entre uma forma e outra. Acredito que uma imagem-sensorial para uma crítica hoje tenha a ver com isso: a impressão de que aquilo que criticávamos talvez nunca tenha acontecido.
[1] ADORNO, T.; HORKHEIMER. M. A dialética do esclarecimento, 1985.
[2] Para acompanhar cronologicamente os textos e seus principais comentários durante esse período, ver a coluna de Agamben no site quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben
[3] BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. 1935/1936.
Micael Correia tem 23 anos e é um escritor não-autorizado. Tem experiência em Psicologia Clínica e se interessa pelas áreas de Psicanálise, Filosofia e cultura popular.