Pão de Açucena

A rua parecia muito maior, nem aquela luz que costumava piscar no segundo poste depois da curva cumpria a função de iluminar; o frio não era só o do vento, algo em seu peito dizia que não deveria ter saído de casa mas o pote de biscoitos vazio em que costumava guardar dinheiro gritava que sim, ela deveria sair.

Os pés estavam pesados, mais que de costume, carregava angústia e sentia medo. Mais alguns passos e dois pontos de luz perfuraram a escuridão e fizeram o coração dela disparar, estava mais devagar do que os carros costumavam passar naquela estrada.

— E aí princesa? Quer uma carona?

Quando ouviu essas palavras estremeceu automaticamente, tentou apressar os passos mas estava cansada demais, com fome demais, sentia gosto de sangue na boca e um bolo se formou em sua garganta, semicerrou os olhos enquanto sentia dois rastros mornos e salgados desenhando seu rosto; parou e observou as estrelas que estavam nitidamente visíveis naquela noite limpa. Apertou o crucifixo contra o peito e sussurrou:

— Me desculpa mãe, desculpa pai…

Foi quando sentiu o primeiro golpe, uma rasteira, e estava no chão. Ela escutava uma voz dizendo várias coisas mesmo o som parecendo distante, era a mesma voz que a oferecera carona, mas não era a mesma voz que a perturbava, essa voz estava em sua cabeça como as lembranças do pai que a atingiam em cheio; enquanto o dono da voz áspera vasculhava seu corpo a voz do seu pai ecoava em sua cabeça.

— Aberração! O que suas tias vão pensar? Você nasceu homem, seja homem!

Por um instante sentiu culpa, talvez ela merecesse aquilo, talvez se não tivesse tentado mudar, se não tivesse tentado ser fiel a sua essência. Mas logo sua consciência tomou forma, não era culpa dela! Ela não merecia.

— Veja só que curioso, você tem peitos, belos peitos. Mas parece que tem mais do que deveria ter entre as pernas.

Aquelas palavras ditas com um bafo quente e com cheiro de álcool ao pé do seu ouvido a fizeram sentir ânsia de vômito, reuniu todas as forças que tinha e empurrou aquele pesado corpo de cima do seu próprio corpo agora exposto. Correu como louca, descalça e sem sua sacola de compras com a comida de uma semana, que era tudo que havia conseguido naquela noite, tropeçava nas próprias pernas e mal conseguia respirar, sentia dor no peito e pavor, um pavor que a devorava como a escuridão a sua frente que vez ou outra era dissipada quando os faróis iluminavam aquela estrada de terra.

— Não adianta correr franguinha!

Ele gritava como um sádico enquanto ela sentia todo seu corpo em choque, sua casa ainda estava longe mas a dos seus pais estava próxima, não sabia se eles a deixariam entrar, estava tarde, ela não era mais como era na casa deles, mas não tinha escolha; quando finalmente alcançou a porta de metal envelhecida bateu desesperada enquanto gritava:

— Socorro! Me deixa entrar! Por favor… ela suplicava.

O som da porta metálica esbarrando no chão de concreto em contraste com aquele som de pneu em atrito com a estrada de terra era tão assustador que ela nem conseguia pronunciar nenhuma palavra, enquanto a figura da sua mãe assustada a reconhecia de alguma forma.

— Eric? O que está acontecendo?

—Tem alguém atrás de mim, está tentando me machucar.

— Meu Deus! Como chegou a esse ponto meu filho? Eu te avisei pra não levar pra frente essa loucura.

— Eu sinto muito incomodar, eu vou embora de novo eu só não tinha escolha, ou eu vinha pra cá ou ele ia me matar.

— Quem ia te matar?

— Eu não sei, eu estava voltando pra minha casa quando ele parou o carro perto de mim e

tentou… ele.. ele ia me machucar mas eu corri.

Antes que ela pudesse dar mais detalhes da história, um pai mais mal encarado do que ela se lembrava entrou no seu campo de visão com um espingarda na mão

— O que está acontecendo Maria?

Parou assim que notou a presença dela, encarou alguns segundos como se a reconhecesse também.

— O que esta coisa está fazendo aqui?

— Calma João, tem alguém atrás dele

— E o que nós temos com isso, ele que resolva seus próprios problemas.

— Pai… eu

— Eu não sou seu pai, eu só tive um filho, um homem. Ele morreu há quatro anos.

— Não fala isso João, pensa que ele está aqui agora é uma segunda chance , é Nossa Senhora nos dando uma oportunidade de salvar ele.

— Não quero mais ouvir essas baboseiras! Fora da minha casa!

— Por favor, João! Eu tô te implorando, e se esse homem ainda estiver lá fora? Vai machucar ele.

— Eu não tenho nada a ver com isso, ele é só um desconhecido, se está tão incomodada pode ir com ele.

O pai que havia jurado a proteger quando ela tinha doze anos não existia mais, assim como aquele garoto que queriam que ela fosse também não. Sem nenhuma compaixão a pegou pelo braço abrindo a porta de metal bruscamente fazendo um barulho ensurdecedor e mais uma vez a jogou pra fora como ele mesmo o tinha feito quando ela só tinha catorze anos. Antes que ele pudesse fechar a porta puderam ver o sádico homem se aproximar e puxar o cabelo agora crescido daquele que um dia fora seu filho, não disseram nada só observavam ela sendo arrastada enquanto implorava.

— Por favor, eu não fiz nada! Eu só fui comprar o meu próprio pão! Não pedi nada,…

Socorro!

A mãe sentia o rosto queimar e o coração bater forte e o choro explodiu assim como a raiva, e assim ela tomou a espingarda do chão e invadiu a escuridão em busca do filho que um dia sonhou, quando finalmente avistou aquele ser asqueroso que machucava seu bebê apertou o gatilho, de novo , de novo e de novo, perdeu as contas, chorou e rezou.

— Me perdoa Nossa Senhora Aparecida, e caiu de joelhos.

De longe ela levantou a cabeça e encarou a figura da mãe ajoelhada chorando compulsivamente e aquele que a atormentara caído cheio de sangue e buracos pelo corpo; se aproximou devagar e levantou a velha senhora de estatura pequena, a abraçou tão forte que sentia o corpo estralando.

— Obrigada mãe.

Ficaram alguns minutos em silêncio absorvendo aquela situação, logo ouviram um barulho de explosão e a figura do pai saindo do meio da fumaça carregando um galão de gasolina agora vazio e uma caixa de fósforos invadiu a visão delas, foi quando procuraram pelo corpo do homem mas não encontraram.

***

O sol entrava pela janela do carro, enquanto seus olhos se acostumavam com a claridade, ela reconhecia o vestido florido que a mãe costumava usar aos domingos para ir até a igreja, mas não se lembrava de vesti-lo.

— Está bem querida?

Reconheceu a voz da mãe e olhou na direção que a voz vinha.

— Como devemos chamá-la? Perguntou a mãe.

Seu coração se aqueceu e as lágrimas desceram de repente todos os últimos quatro anos pareciam ter sido só um pesadelo horrível, o pai não falava nada mas dirigia e parecia aliviado.

— Açucena. Ela respondeu mais pra si mesma

— Lindo, Açucena. Eu sempre quis ter uma filha.

— Açucena. Repetiu o pai

Pela janela ela viu a placa Itamarandiba a 26 km, estava de volta a Minas Gerais e a última lembrança que tinha ainda estava no chão em Itapecerica da Serra abraçada a mãe depois de sobreviver a um ataque sádico.

— Tem pão aí nessa sacola azul do seu lado.

Foi o que ouviu do pai com os olhos fechados, as mãos no peito segurando o crucifixo chorava e repetia:

— Obrigada, obrigada, obrigada

— Nunca mais vai te faltar pão. – Completou a mãe.

Aquela sensação de medo que a perseguia morreu, e ali ela nasceu como Açucena e como uma pessoa feliz e amada.


Wanderson Henrique Santos é poeta e escritor mineiro, nascido em 1997 autor em diversas antologias e estudante de Letras UFVJM. Prefere enxergar a literatura como uma plataforma em que se expressa com representatividade, choca e almeja mudança.



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