Recentemente descobri que tenho um sério problema com o conceito de limpeza. Que a produção natural de substâncias são percebidas como sujeira. É inaceitável glândulas trabalharem, e que delas são provenientes odores que são inadmissíveis, disso são dispendioso o contato, a interação. Pois desta sujeira falemos: a sujeira estimula os sentidos! Da nossa construção social incompreende a possibilidade uma pessoa ou objeto ser maculado por mãos gordurosas e sua acolhida é em estado intocável. Justo de uma sociedade que convida ao pós vida o consumo de pão e vinho, como corpo e sangue divino para salvação.

Minhas mãos ficam cada vez mais limpas de mim, o álcool em gel – que neste momento é necessário – envelheceu-me, em aparência, uns 10 anos; hoje entendo como é insuportável uma peça de museu ser higienizada por anos a fio, afim de estabelecer longevidade de uma estrutura que o intocável fala mais do lugar em que está a peça, do que realmente ela representa do povo, história e vida.

Hoje escrevo estas linhas com uma lapiseira de 14 anos. Plástico, borracha, algumas peças de metal e, que eu desconheço, grafite. Reconheço nela cada arranhão, lembro do estado de nova, porém a vida que divido com que esta artigo de papelaria é bem mais interessante. Não há nada de estupendo: não escrevi cartas que mudaram rumos de minha história ou de alguém. Não é uma canetada valiosa. É a desconhecida peça de um desconhecido. Imaginem quantas vezes essa lapiseira foi usada para vários nadas e tudos. Uma coisa é surpreendente: escrever sobre lapiseira é mais árduo do que pode-se imaginar. Ler sobre lapiseira, sujeira e preciosismo ocidental não são temas fáceis de relacionar.

Conheço esta lapiseira há muito mais tempos que meus amigos mais antigos de convívio. E nela tem as marcas das minhas mãos em solução corrosivas: suor, gordura, etc. Deixei rastro e identidade na pequena geografia deste item. Ela não tem na sua constituição nada transparente e se tivesse seria opaco. Seria algo como olhar através de um papel contra luz, como a vida quando olha-se para algumas memórias: brandas, quentes, afetivas. É bom que não tenho a lucidez de uma imagem límpida, posso preencher com coisas ainda melhores; as lacunas, foram deixadas de propósito.

Esta lapiseira está apta para uso. Está apta para exibição também, caso eu morra. Mas ela morre em seguida: quando dela se tira a vida e expõem a carcaça. E de preferencia em um painel. É feito o sacrifício para o deus institucionalização. É o projeto taxidérmico mais espantoso. Não considero que a vida de objetos devam ser corrompidos. Tristemente são destinados para algum tipo de solução, lavados de qualquer resquício da experiência de existir. E ainda sim, por fim, são catalogados, tombados, pertencente d’uma lista em códigos de barra. Esquecidos em acervos técnicos de prédios quaisquer, sem qualquer valor, despedem-se do conhecimento por financiamento.

Talvez da sujeira cultural venha o límpido som cromático tão impreciso a ouvidos acostumados aos sons dissonantes da filha de Agenor, rei da Fenícia. Escrevo daqui para aqui. Este idioma assentado nesta terra possibilita a livre compreensão de seus reféns linguísticos, gramaticais, ortográficos. Assim sujo a norma de culta língua portuguesa. Pois desta sujeita, alvejaram a ortografia original. Impediram-me de ver meu tão próprio amor em formas naturais e mundanas, pois me faltavam L(ei)s, F(é)s, R(ei)s. Dando direito do som encrespado em sujeito, verbo, objeto; em nova ordem, ocupar o novo mundo.

Meu dilema é: em uma poça d’água no chão saem grandes ideias ou grandes pessoas ou evaporam? Decidi que sou uma ideia em carne. Vou demorar algum tempo para desaparecer, estarei – incomodando – entre seus olhos lembrado que dormiu a pouco ou muito tempo. Debaixo de suas unhas, após um trabalho com terra. Minha insistência não dura por muito, pois meu registro é sutil, humano. Serei o liquido que te encara de volta no fundo de um copo em um bar de pés-não-tão-limpos?

Talvez, hoje seja uma utopia compor uma vida além, fora deste contexto. Afinal somos a única espécie que paga para viver. Por meio de impostos condições que inventamos para nos organizar. A nossa organização foi tão eficiente que estranhamos a vida além-tela. E que não há “fora” deste sistema, politizamos nossas relações. No entanto, eu como ideia, é inaceitável em espaços para praticas em coletivo, o individual grita e quando menos humano for, melhor, para assim se comparar as máquinas. De preferência em realidade virtual, sem o incomodo de interagir, pois com a velocidade que as IAs que temos não sabemos se do outro lado é uma pessoa ou um assistente virtual que aprendeu a contar piada. Esquecendo de questões bem básicas: envelhecer está fora de moda. Aceitamos mais a morte como apagamento ao decaimento de um sistema humano.

Existe uma sensação de estrangeirismo nesta ocasião, nada geracional, até por entender que relações por apego são condicionalmente ligadas pela defasagem romântica que baseia-se no conflito, o impasse de confundir amor com apego e, que desta, ser surpreendida por domínio, submissão, comando e indiferença. E nesta vivência, cíclica, erros são cometidos ispsis litteris desde o mais tenro imemorial suspiro por amor à ideia. A recíproca seria verdadeira desde quando soubéssemos quem somos. E exigimos do mundo uma adequação e aceitação por aqueles que decidimos que são nosso iguais, eles mais iguais entre eles do que com outros. Talvez o esvaziamento do eu (a vacuidade, hoje, seja a palavra de menos importância), seja a maneira que deixarei de ser mercadologicamente interessante. Esvaziar do eu é se encher de quê? Eis a questão quando não sabemos fazer as perguntas certas.

Não tenho medo. Pois o pedido de desculpas já foi feito! Para o meu eu do futuro, no meu passado, afinal minhas mãos continuam sujas de grafite, dedos empanados em papel polén, de saliva amortizada pelo lufar de sangue das paredes do curtume pandêmico.


Adriano Henrique Bastos Muniz é graduado em artes pela UFPA, e artista desde muito antes. Se expressa, principalmente, através de textos e aquarelas, abordando temas voltados à comunidade a que pertence. 



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