Pensamentescrita: crônica, notas de passagem 

Há algo em Gilbert Simondon que me anima a leitura e solicita-me a escrita. Digo Simondon, este filósofo francês que, por hora, seus textos estudo, mas poderia dizer Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo brasileiro cujo Metafísicas Canibais também tem sido objeto de leitura e escrita, assim como Exercícios de bioenergética, do terapeuta Alexander Lowen. O que importa é que essas leituras me levam a escrever, e isto é digno de nota: penso que cabe a nós, aqueles e aquelas que por um motivo ou outro escrevem, tentar compreender esta força que nos move os pensamentos; sobretudo no que estes pensamentos são elaborados no seu decurso textual, isto é, pela escrita que possibilita certos pensares. Mas como compreender esta força insuspeita que nos move a cada vez? Digo força, pois desconfio que se trata mais de uma expressão e seus efeitos (físicos) do que do conteúdo e suas causas (abstratas).  

Bem dizer, talvez seja o modo desconcertante – ao menos para um leitor acadêmico brasileiro médio do século XXI (seja lá o que isto signifique) – de como Simondon escreve, afirmativo, discorrendo sobre a problemática eleita, praticamente sem citar ninguém, sem referenciar origens, sem localizar o meio e o fim. Eu, leitor sempre na iminência da escrita (inicialmente na borda do livro), sinto estar lidando com um fluxo de pensamentos (que em determinado momento já não sei se é dele ou meu). Eminente solicitação de escrita que resulta, de modo análogo, do encontro com o conceito de perspectivismo, retomado por Viveiros de Castro de Gilles Deleuze (que, por sua vez, o toma de Leibniz). São citações, recitações, suscitações e ressuscitações que povoam os pensamentos e produzem excitações corporais que, por sua vez, engendram uma dinâmica pensar-escrever. Poderia também citar a ideia, presente no texto de Lowen, de que um corpo saudável é um corpo vibrante, convergindo-a com a especulação, de minha parte, de que estes textos repercutem no corpo da leitura, fazendo-o vibrar, numa dinâmica transdutiva que vai do olho ao pensamento e deste à mão que escreve. 

Se tais textos me animam (diria que movem minha alma, se não soasse clichê) é por haver, penso, um incerto ponto de encontro justamente ali onde a escrita se conjura com o pensamento. Tecnicamente falando, a escrita aqui não opera como meio de comunicação, outrossim, ela informa o pensamento – torna-o capaz de ser pela dramaturgia do texto – e o formaliza em grafia – trans-forma: isto é, transduz o informe do pensar na forma da letra. Tecnologicamente, não se trata de informação e comunicação, mas de experimentação e composição.  

Na sua tese principal, A individuação à luz das noções de forma e informação, lá pela página 500 (se me lembro bem), Simondon distingue o técnico do especialista. O primeiro, segundo ele, cumpre uma função na sociedade que é a de acessar algo no indivíduo técnico que não é possível aos demais – que ignoram o modo de existência destes objetos técnicos –, e que, não sendo capaz de compreendê-los, podem apenas, quando muito, manejá-los. O técnico é o oposto do “indivíduo comum”, no sentido de que ele vê, nos artefatos tecnoculturais, por assim dizer, aquilo que os segundos são incapazes de notar – menos ainda de entender. Eis aqui uma pergunta que me ocorre agora: seria a ferramenta, como é costume afirmar, uma extensão do humano ou, ao contrário, seria este humano, ignorante de sua história tecnológica – de si em sua constituição social pela lógica da técnica –, uma extensão da ferramenta? Pois, se ele é conjurado pelo trabalho que executa, e pelos dispositivos técnicos que “consome”, sendo alheio ao devir do sistema no qual se insere, não é tão ferramenta quanto as demais? É o tal do recurso humano. De sistema, leia-se capitalista: simplificando, é bem verdade, a problemática enunciada, mas que nos vale para evidenciar o destaque que a técnica ganha no pensamento simondoniano (atualizado no pensamento da minha leitura, dos meus estudos e escritas). 

O especialista, por outro lado, é aquele que segue protocolos, intervém como um repetidor de gestos, antevê modelos e prevê sua réplica. O especialista segue informações, no sentido de sinais que precisam ser replicados, conforme os manuais – daí a tão anunciada “profissão do futuro”, aos trabalhadores da tecnologia da informação e comunicação. O técnico, em contraponto, segue a informação, no sentido simondoniano, como a tomada de forma: segue a individuação em seu devir. Um técnico age pelas evidências, segue os indícios do devir do indivíduo técnico que tenta, por ocasião, consertar. Ele é também uma espécie de detetive ou médico, pois que projeta uma cura – ou o conserto – pela semiótica própria à tecnicidade com a qual lida, ou, no caso do indivíduo humano, a organicidade, seus órgãos e sistemas – de acordo com o viés anatomofisiológico. Mas assim como há, para seguirmos com a distinção, o médico técnico, que segue indícios e denota uma causa prévia no devir da complexidade de um corpo humano, há aquele que é especialista, seguindo protocolos: se há febre ele indica um antitérmico, e isto deve bastar. O técnico assume uma consciência da historicidade daquele corpo, o especialista resolve o problema tal qual lhe aparece, em sua emergência. Não há, assim, no especialista, a necessidade de se conectar com o corpo do paciente em sua singularidade, em sua complexidade individual, cabendo lidar com sua especificidade, como espécie humana. Os protocolos garantem tanto uma suposta isonomia quanto projetam uma impessoalidade. Pouco importa se o corpo vibra, desde que não tenha dor. Mas como viver sem dor numa sociedade que adoece? 

Nós, humanos, compartilhamos a agência no mundo com estes corpos técnicos. Coagidos a agir, muitas vezes.  Mas e o que isto tem a ver com a escrita de Simondon e minha leitura dela? Intuo ter algo a ver com uma espécie de crônica do pensamento. Me parece que Simondon, como filósofo, devém técnico: isto é, não segue protocolos de uma escola filosófica, nem afirma ser detentor de amplo arcabouço teórico – obrigação de um bom especialista. Seu movimento de escrita parece seguir os processos de individuação – sobre a individuação e em individuação –, em sua tese principal, e a semiótica da tecnicidade em seu processo histórico e seus efeitos contemporâneos, na sua tese complementar – Do modo de existência dos objetos técnicos. Cabe notar que indivíduos e técnicas agem em reciprocidade, entremeios no qual ocorrem transduções, uma vez que a individuação – ao menos no âmbito social – se dá num meio tecnogeográfico que definimos, socialmente, como os espaços da indústria, do laboratório, do comércio, da escola, da universidade. Nosso corpo é conjurado pelo meio tecnogeográfico no qual se constitui, no território no qual faz casa, faz vida, faz mundos – e os faz pelas técnicas. 

Talvez o que eu esteja aqui fazendo é argumentar, usando Simondon como um aliado, em prol de uma crônica do pensamento-escrita (num envolvimento indiscriminado pensamentescrita), no sentido de que ela (a escrita que nota o pensamento) se dá no âmbito do cotidiano. Escritoras e escritores deste naipe, que notam o dia-a-dia (dos textos dos livros aos contextos do mundo), precisam lidar com as imprevisões do porvir, com o inesperado, e mesmo com o imponderável. Escritores e escritoras deste naipe, meio curingas que são, não disfarçam as dúvidas, hesitações e os fracassos – muito pelo contrário, às vezes os enaltecem. Numa sociedade de especialistas, que aparecem por seu suposto sucesso – e consequente número de “seguidores” –, estes outros, Jokers, jogam enquanto desaparecem sob a máscara que performam. As escritas ficam, mas eles são passageiros: insurgem aqui ou acolá, mas logo desaparecem, não há rostos nas selfies. Assumem uma perspectiva, que não é a do sujeito, mas a do lugar de observação, a vista de um ponto – e não o ponto de vista. Rechaçando opiniões, alheios às comunicações informativas, assumem um lugar da escrita (mais certo é dizer que são assumidos por tal lugar), não necessariamente um lugar de fala: anotam aquilo que notam, deixam grafos desta passagem e seguem passando. É uma espécie de hodografia: uma escrita do caminho.  

A crônica, como gênero, lida com o passar do tempo (com a cronologia da vida, daí seu nome). Passagem esta que é ocupada pelo pensamento que se atualiza em técnicas de escrita, sendo estas possibilitadas por indivíduos técnicos: do papel e caneta, computador ou celular, da cadeira do escritório, banco da praça ou da cafeteria. Pensamentescrita, neologismo de pouco charme: seria uma pensar a mente pela escrita? Talvez, desde que a mente não seja sinônimo de cérebro, mas repouse no coração, conforme se diz no Yoga Sutras de Patanjali. Não somos intelectuais, somos corporais, numa composição heterogênea mais ou menos improvável, engendrados pelas coisas, pelas tecnologias, pelo cosmos, pelo caosmos. 

Há muito para ser visto, e muito disto é imprevisto: precisamos de uma ciência da imprevisão. Nos dotarmos de uma atenção aos cantos: para que metaversos se há tantos infraversos que nossa desatenção não nota? Assumir nossa frágil condição, percebendo que somos coagidos por uma sociedade do consumo e do cansaço, que convoca nossa atenção para todo tipo de processo especializado. Assumir que somos ridículos, isto é, passíveis de riso, e começar por aí, pelo meio. Uma crônica (filosófica?) do pensamento, neste sentido, teria algo a ver com o ensaio, mas seria potencialmente mais irreverente, temperada com ironia. A ironia sendo esta espécie de distância de si e do acontecimento, que faz da crônica um pensar sobre o próprio pensar, tomado por uma força extática, num distanciamento que nos coloca por dentro. Somos, nós, exógenos. Já não importa quem é que lê Simondon (ou Viveiros de Castro, ou Lowen, ou Patanjali): quem escreve, em reciprocidade com a leitura, é o pensamento e a técnica – o indivíduo é passageiro na individuação. 


Diego Esteves é artista, professor e pesquisador. É doutorando em Educação pela UFRGS, graduado em Educação Física – UNISC e estudante de História – UFPel/UAB. É fundador do Núcleo de Experimentações Cênicas e Transversalidades – NECITRA (https://necitra.com), da Canto – Cultura e Arte (https://canto.art.br) e cofundador do UNOEGO – criações transmídia (http://unoego.com). Tem pesquisado e publicado sobre educação, escrita, poética,  técnicas,  tecnologias, jogos, improvisação, experimentações e composições. 


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