O que um relógio conta,ora?!

Juiz de Fora, 21 de janeiro de 2023.

 

Esse relógio é daqueles objetos biográficos que carregam parte da essência de quem nos presenteou. Minha irmã, além de me legar vários livros, legou-me essa joia, que ela comprou há mais de quinze anos, quando ainda morávamos juntos na rua Espírito Santo, no Centro de Juiz de Fora. Em 2014, quando me mudei de apartamento, insistiu para que o levasse comigo, como uma espécie de amuleto de “boa sorte”. Talvez seja um “mimo” de irmã mais velha, preocupada em preencher o “oco” e o “vazio” do novo ambiente com a sua “presença ausente”.  

 
Como historiador que trabalha em museu, acredito muito na força da trama poética dos objetos e na capacidade que eles têm de mediarem nossos afetos e memórias. Os objetos não apenas são afetados pela biografia de seus proprietários, como possuem suas próprias biografias. Por isso, sempre acho que precisamos respeitá-los. 

 
Quando se destrói um objeto motivado pela raiva e pelo simples prazer da destruição, vidas e memórias são afetadas e violentadas. Comparo essa reflexão pessoal com a que Peter Stallybrass faz em seu livro O casaco de Marx, no qual o autor analisa a relação de Marx com seu casaco. Uma relação que transcendia o mero interesse no lucro. Marx, apesar de precisar penhorar seu único casaco “chique” no verão, com o objetivo de juntar algum dinheiro com o qual pudesse sobreviver, sempre o resgatava no inverno, não apenas para protegê-lo do frio, mas para preservar seu significado simbólico e sua memória. Stallybrass, assim, chama atenção para a relação das roupas com nossos corpos e vice-versa. Ao final do livro, o autor menciona uma emblemática e impactante situação: o momento do ritual de passagem de um presidiário, ao ter suas roupas arrancadas e sua identidade sequestrada pelo poder coercitivo, que lhe impõe rótulos e o obriga a habitar a condição de um ser desprovido de liberdade, subjetividade e individualidade.  

Em níveis maiores ou menores, a relação do ser humano com os objetos é uma relação sentimental. Quando perdemos algo, não lamentamos apenas o prejuízo financeiro, a perda do tempo e do trabalho despendidos na sua aquisição. Também sofremos pela perda da matéria que serve de suporte para edificar nossas memórias e existências. No conto “O Espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana”, de Machado de Assis, publicado na Gazeta de Notícias (RJ) em 8 de setembro de 1882, o narrador-personagem, Jacobina, já dizia que “[…] cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… […] A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.”  

Deixando de lado a ironia e a crítica machadianas presentes nesse fragmento do conto, não é nenhum exagero considerar que a afirmação de Jacobina seja a mais genuína e sublime percepção do “materialismo”. Equivoca-se quem pensa que o capitalismo seja materialista. Este é, na verdade, desmaterializante em sua essência, pois tem o poder de tornar tudo efêmero, descartável, e de substituir o fetiche do objeto pelo ato de comprar: o consumismo. O consumista ostenta o poder de compra de um objeto cobiçado. Prende-se à pulsão incontrolável de colecionar atos de compras, mas não está nenhum pouco interessado na perenidade daquilo que comprou. Não permite que os objetos envelheçam junto com ele e assumam, simbioticamente, características e vestígios de sua existência. É a lógica inversa do marceneiro que não consegue trabalhar sem o martelo com que o avô lhe ensinou o ofício desde a mais tenra idade, do músico que não se desprende de seu violão, etc.  

2023 começou me trazendo essa reflexão. Certamente, não é uma elucubração fortuita. Refletia sobre isso enquanto faxinava minha casa numa tarde de sábado, em janeiro, e higienizava cada peça do pequeno relógio de madeira com que minha irmã me presenteara. Não por acaso, foi na semana em que certo homem, possuído de seu instinto animalesco, destruiu uma grande relíquia em Brasília, no Palácio do Planalto. Valendo-se de um pequeno e grandioso artifício responsável pela evolução de nosso aparato civilizatório – que é a capacidade de fazer pinça com a junção do polegar com o dedo indicador –, aquele homem atentou contra a civilização. Metáfora melhor para os tempos distópicos que estamos vivendo, marcados pela negação da história, não há. Mas o que são a história e seus objetos para os contagiados pela sanha fascista que transborda pela “Terra plana”? Para muitos, nada de errado nisso. Está tudo bem… Aliás, tudo joia! E, por falar em joia…  


Sérgio Vicente

Doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade. Dedica-se a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG). Desenvolve pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural em museus – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos e oficinas. É colaborador da revista “Trama” desde 2020. 


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