Liberdade sempre foi uma busca para mim e soa como uma música na voz de Nina Simone. Quando ouvir pela primeira vez I Wish I Knew How It Would Feel To Be Free, pensei o quanto a letra dessa música pode descrever um pouco do que venho compreendendo sobre liberdade.
Enquanto mulher, negra, de origem periférica, liberdade para mim sempre foi uma busca. Primeiro enquanto filha, criada por pais superprotetores, que sem dúvidas imaginavam como a sociedade lá fora trataria uma moça negra fora do alcance da proteção deles. Aqui a liberdade tinha a ver com falar o que penso, e era sobre ir e vim.
Atravessar o muro de casa e colocar o corpo negro feminino no mundo já me apresentou outros tipos de obstáculos para o alcance da tal liberdade. Os passos que fui trilhando na vida, principalmente por meio dos estudos, me fez perceber algumas correntes invisíveis que habitavam em meu corpo.
O corpo negro feminino, um corpo monitorado, controlado, definido pelos olhos dos outros, coberto sobre o véu que nos fala W. E. B. Du Bois (DU BOIS, 2021). Afinal, como esse corpo poderia conhecer a liberdade, oprimido pelo racismo e sexismo desde sempre, na vida real e nas narrativas de entretenimento? Eu pergunto a você, minha irmã, como a gente aguenta tantas correntes sobre nossos corpos? E como o nosso Orí dá conta? Quantas vezes adoecemos?
Tomar consciência de nosso corpo no mundo é uma revolução. Ecoa em minha cabeça a frase de Beatriz Nascimento, quando fala que “não é à toa que a dança para o negro é um momento de libertação” (ORÍ, 1989). Meu corpo precisa dançar, ele vem me alertando há um tempo. É na dança e no desafio de desamarrar as correntes do autojulgamento alienado de tantas construções sobre nossos corpos negros femininos, que consigo entender um caminho para a tal liberdade. Mas, para isso é preciso coragem, a liberdade exige coragem de enfrentamento, exige uma ação.
E encontro gritos de liberdade em diferentes vozes negras femininas que cantam em suas canções, como quando Héloa canta “Todo corpo uma dança, todo corpo uma curva, um desejo, ser o que se é” (HELOA, 2022) ou em outra canção, quando ela e Margareth Menezes dizem juntas que “O belo tá na liberdade” (HELOA, 2022), músicas que canto em alto e bom som enquanto dirijo. Aliás, o volante para mim sempre foi uma ideia também de ser livre. Poder ir e vir, como quiser e quando quiser.
Nos autodefinir, por tanto, é uma missão. É uma possibilidade de liberdade desse corpo negro feminino. É um ato de amor. E não se trata de uma ação individual, mas coletiva, aceitar o nosso ser e permitir que o outro também possa nos acessar, nos acolher. A vulnerabilidade, nesse sentido, não é um perigo, é humanidade.
Potencializar o caminho de construção de nossa liberdade também é desacreditar nas mentiras que construíram sobre nós, desvalidar os estereótipos e as fantasias coloniais, que constantemente aparecem em nossos autojulgamentos. Um caminho possível é conhecer as éticas de nossas ancestrais, as Ìyálóòdes, Gèlèdés, Elekôs, a força dessas mulheres nos encoraja também e pode nos mobilizar a uma ação em pro de nós mesmas e dos outros.
Assim, aprendo com Osun, a senhora Ìyalóòdé, o caminho do autoamor, para entender minhas águas mais profundas e assim, atuar de forma mais fluída no mundo. “Osun, aquela que para se fortalecer, olha no espelho.” (NOGUEIRA, 2021).
Referências
DU BOIS, W.E.B. As almas do povo negro/W.E.B. Du Bois. Tradução de Alexandre Boide. Ilustração de Luciano Feijão. Prefácio de Silvio Luiz de Almeida. – São Paulo: Veneta, 2021.
HELOA. Todo corpo. In: Héloa. yIDé. Cayndall Produções Artísticas LTDA. 2022. Spotify.
HELOA. Realeza. In: Héloa e Margareth Menezes. yIDé. Cayndall Produções Artísticas LTDA. 2022. Plataforma Spotify.
LAMB, Richard. WILLIAM, Taylor. I Wish I Knew How It Would Feel To Be Free. In: Nina Simone e Sammy Love. Silk & Soul (Expanded Edition). RCA/Legacy. 1967. Plataforma Spotify.
NOGUEIRA, Sidney. Lições Epistemológicas de Osun. 17 de outubro de 2021. Instagram: Professor.sidnei. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CVIojpSriIn/. Acesso em: 06 de março de 2023.
ORÍ. Direção: Raquel Gerber. 1989. 91 min.
Luciana Oliveira é mãe, cineasta, pesquisadora e curadora. Graduada em Audiovisual, Mestra em Cinema e Narrativas Sociais e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. É co-idealizadora e diretora geral da EGBE – Mostra de Cinema Negro e cineclubista no Cineclube Candeeiro. É também associada a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), integra o Forum Permanente Audiovisual Sergipe e é sócia na Rolimã Filmes.
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