Com a inauguração da Villa Ferreira Lage em 31 de maio de 2023, o Museu Mariano Procópio concluiu a terceira e última etapa de sua plena reabertura às cidadãs e cidadãos de Juiz de Fora, de Minas Gerais e de todo o Brasil. Amplamente repercutida nas mídias, a notícia ultrapassou os limites do regional, reverberando no Jornal Nacional e na Globo News. O sucesso de público, que reflete uma demanda reprimida há tempos, foi estrondoso nesse mês de junho: cerca de 2000 pessoas no primeiro final de semana, 1400 no feriado de Santo Antônio e a manutenção dessa média aos finais de semana.
Com uma média dessa de público espontâneo no mês de junho, o Museu Mariano Procópio não poderia ter recebido melhor homenagem pelos seus 102 anos de inauguração oficial pelo fundador Alfredo Ferreira Lage (1865-1944). Em 23 de junho de 2021, quando o equipamento cultural completava seu centenário, suas portas se encontravam fechadas desde março de 2020, por conta da pandemia de Covid-19. Diante dessa circunstância, que inviabilizou a utilização da Galeria Maria Amália e de suas salas contíguas no primeiro andar do prédio anexo – que eram os únicos espaços físicos então disponíveis à visitação pública desde agosto de 2016 –, não houve alternativa, a não ser organizar uma programação virtual, através da realização de lives, vídeos e postagens no canal da instituição no You Tube e nas redes sociais.
Vale destacar que a restauração da Villa, iniciada em 2009, teve cerca de 70% de seus trabalhos finalizados no final do ano 2019, permitindo que, em janeiro do ano subsequente, os técnicos da instituição realizassem diversas visitas mediadas de grupos agendados e espontâneos a todos os cômodos da edificação. O objetivo era refletir sobre os usos sociais do espaço no século XIX e nas décadas que se sucederam, demonstrando a dinamicidade e a mutabilidade do espaço, os bastidores do processo de restauração e as camadas do tempo descortinadas pelos restauradores. Juntamente com as visitas mediadas, os servidores também prepararam, na Galeria Maria Amália, a mostra “Retalhos do Passado: histórias (des)encobertas pelo restauro da Villa”, por meio da qual os visitantes tiveram oportunidade de visualizar registros fotográficos e fragmentos arqueológicos encontrados durante esse meticuloso processo de restauração.
Com o advento da pandemia do coronavírus, em março de 2020, as visitas mediadas ao espaço tiveram que ser interrompidas abruptamente. Passado esse interregno de dois anos, a nova gestão municipal sinalizou, em junho de 2022, para um processo de gradual reabertura de toda a edificação histórica. A partir de então, começaram os preparativos para o início da primeira etapa do processo, que envolveu a reabertura do primeiro pavimento do prédio anexo, com uma exposição alusiva aos duzentos anos da Independência do Brasil. A referida exposição, inaugurada em 7 de setembro de 2022 e intitulada “Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação”, foi montada entre os meses de julho e agosto do mesmo ano, tão logo a equipe foi informada de que o Museu Mariano Procópio figuraria na lista de aparelhos de cultura do município que participariam das comemorações do bicentenário.
A segunda exposição, intitulada “Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio”, foi montada em fevereiro de 2023 e inaugurada em 3 de março do mesmo ano. O percurso narrativo, constituído de dez salas no total, narra a história e os diferentes aspectos do colecionismo de Alfredo Ferreira Lage e do Museu Mariano Procópio, explorando as seguintes temáticas: as diferentes facetas da trajetória de Alfredo Ferreira Lage; a concepção de “gabinete de curiosidades” que norteava a formação intelectual de caráter enciclopédico de suas coleções; a influência feminina no perfil colecionista do fundador; o projeto de perpetuação das memórias do Império Brasileiro; as mudanças e permanências no perfil colecionista da instituição após a morte de Alfredo e a posse de sua sucessora, a diretora Geralda Armond, que geriu o museu por 36 anos (1944-1980); e, por fim, diversas reflexões sobre o papel do museu na contemporaneidade, como a incorporação de memórias, narrativas e identidades plurais sobre os povos originários de origens indígena e africana e a abordagem dos afrodescendentes como personagens históricos e atores sociais ativos na construção da história do Brasil. Nesse sentido, também se sinalizou para a importância de o museu ser visto como espaço não-formal de educação e produtor de conhecimentos multidisciplinares – inclusive, no campo da conscientização ambiental.
Enquanto isso, a montagem da Villa Ferreira Lage foi realizada entre os meses de abril e maio, com o objetivo de criar a ambientação de uma casa de veraneio de uma família da elite senhorial brasileira do século XIX. Composta de dois pavimentos com 14 cômodos e um porão semi-enterrado, a composição do circuito expositivo foi realizada em tempo recorde, logo após a Prefeitura Municipal de Juiz de Fora finalizar os detalhes que faltavam na pintura das paredes de alguns cômodos.
A equipe curatorial responsável pela concepção expográfica e montagem do circuito expositivo dessa edificação oitocentista, bem como das outras duas exposições, é formada por três historiadores (Sérgio Augusto Vicente, Rosane Carmanini Ferraz, Priscila da Costa Pinheiro), duas museólogas (Alice Colucci e Vera Vargas), um conservador-restaurador (Aloysio Gerheim) e um supervisor de Museologia (Eduardo de Paula Machado). Em menos de um ano, a referida equipe – que contou com o apoio operacional dos servidores de outros departamentos da instituição – conseguiu conceber intelectualmente e montar três grandes e novas exposições, atendendo à demanda de reabertura integral do museu aos públicos. É importante destacar que não se trata apenas de uma mera “remontagem” do circuito expositivo, mas da construção de novas estruturas narrativas pautadas em renovações historiográficas e museológicas desenvolvidas nas últimas décadas.
Uma das várias novidades trazidas pelas narrativas das exposições é a transformação do porão em espaço expositivo aberto à visitação pública. E não apenas isso: vale destacar a importância de sua ressignificação como espaço dedicado às artes e à reflexão sobre os “mundos do trabalho”. No bojo desse movimento, o objetivo central consistiu em lançar luz sobre as vozes silenciadas da história, cujas memórias sofreram processos de apagamento e silenciamento pelos discursos hegemônicos da classe senhorial e da sociedade patriarcal.
Não há provas empíricas ou evidências históricas para afirmar, veementemente, que o porão cumpria a função de senzala. No entanto, sabe-se que a escravidão, fazendo-se presente na sociedade brasileira do século XIX, sobretudo entre as famílias da elite aristocrática, também se fez presente naquele espaço de trabalho, desde os mais elementares cuidados com a casa e o armazenamento de mantimentos, até a preparação das refeições posteriormente servidas na luxuosa mesa da sala de jantar.
Esteve longe de ser fortuita, nesse sentido, a escolha do poema “Perguntas de um trabalhador que lê”, de autoria de Bertolt Brecht, para figurar na entrada do porão. O poema participa da exposição no momento em que o público se sente impactado pelo contraste entre o mundo da riqueza, do status e da sofisticação visualizado nos dois pavimentos superiores, com a rusticidade, a segmentação e o isolamento propiciados por aquele espaço.
Nesse sentido, “Quem construiu Tebas?” – questionamento presente no poema de Brecht – equivaleria à pergunta “Quem construiu a Villa, carregou seus tijolos, suas pedras e dela cuidou para que esse patrimônio subsistisse às intempéries da história?”. Tais questionamentos não servem apenas para refletirmos criticamente sobre o passado, mas, sobretudo, para pensarmos no tempo presente, quando nos perguntamos sobre quem restaurou as paredes daquela edificação e sobre quem trabalhou arduamente para que aquele espaço fosse reaberto à população. Por isso, além da ficha técnica ter sido exposta no porão, as paredes de diversos cômodos serviram de suporte para registros fotográficos dos trabalhos dos restauradores.
O porão se transformou, ainda, em espaço para expor os registros fotográficos de participantes de um concurso de fotografia amadora recentemente promovido pela instituição, intitulado “Olhares sobre o Museu Mariano Procópio”, no qual se podem apreciar, por exemplo, as miradas poéticas dos Srs. Itauan Alves dos Santos e Renato Silva, dois trabalhadores atuantes na segurança e manutenção do parque que circunda aquela edificação. Tudo isso contribui sobremaneira para fortalecer o sentimento de pertencimento de funcionários e representantes das comunidades ao espaço visitado.
Por fim, o porão oferece aos públicos uma sala audiovisual, convidativa a um breve repouso, após longa jornada de visitação por dezenas de salas. Nesse espaço, atualmente se pode assistir a um filme com diversas imagens digitalizadas de uma película produzida no Museu Mariano Procópio nos anos 1930/1940, pelas mãos e olhares do cinegrafista amador Arthur Tavares Machado. Além de assistirem aos personagens históricos em movimento – como Alfredo Ferreira Lage, Geralda Armond e vários outros –, os visitantes podem observar detalhes de objetos exibidos no circuito expositivo daquela época, muitos dos quais figurando nas exposições atualmente em cartaz na instituição, possibilitando estabelecer comparações entre presente e passado quanto à forma de expor esses objetos.
Apesar dos inúmeros desafios enfrentados na montagem das exposições, devido à necessidade de utilização criativa dos recursos de que se dispunha na instituição, a equipe curatorial conseguiu entregar três exposições cujas narrativas e conteúdos estão em consonância com as demandas da chamada museologia social, que se pauta na busca de reflexões críticas sobre os objetos, os processos históricos, suas ambiguidades, contradições e conflitos. Além disso, foi possível escapar, em diversos sentidos, de narrativas canônicas, que se dedicavam ao culto personalista aos chamados “grandes vultos” da história oficial brasileira, à linearidade de uma narrativa tripartite da história do Brasil, que “congelava” a trajetória dos povos originários e afrodescendentes em determinado período e recorte temático da história – como o período colonial e a escravidão, por exemplo.
A reabertura integral do museu aos públicos é, sem dúvida, um momento histórico; não isento, é claro, de grandes desafios enfrentados e que ainda estão por vir. Montar três grandes exposições em menos de um ano apenas foi possível graças a todo o trabalho prévio relacionado à pesquisa, ao estudo, à conservação e à comunicação do acervo por parte da diminuta equipe que compõe o Departamento de Acervo Técnico. Produção de instrumentos de pesquisa (como levantamentos, inventários e catálogos), conservação preventiva, produção de artigos para revistas acadêmicas e de divulgação científica, organização e processamento técnico do acervo, bem como o auto-investimento dos servidores em capacitação (cursos de curta e média duração, pós-graduação lato senso, mestrado e doutorado) e várias outras atividades realizadas ao longo dos últimos anos, são trabalhos “silenciosos”, feitos nos bastidores, de forma gradual, mas que se mostraram imprescindíveis à construção e maturação de conhecimentos e saberes necessários à tecitura de novas narrativas e interpretações dos objetos no espaço museal. Um espaço vivo, mutável, que nunca pode se conformar com os papéis de “cofre” e “templo”, mas crescer cada vez mais como “museu-fórum”, de debates democráticos e de construção coletiva de novos e múltiplos conhecimentos.
Para “Rememorar o Brasil” através do Museu Mariano Procópio, é preciso cuidar, zelar e estimular a formação de uma enorme e infinita trama de “Fios de Memórias”, da qual fazemos parte como cidadãos e cidadãs antenados em pensar projetos de sociedade que articulam presente, passado e futuro como uma grande “tenda” em que entrem todos – rememorando aqui o poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, plotado numa das paredes da instituição. No entanto, nada disso faz sentido se a luta presente e futura não tiver como objetivo construir condições para que a instituição se mantenha de portas abertas e com a potência e a robustez necessárias para continuar cumprindo seu papel social.
chaves
trancadas
portas
abertas
memórias
encadeadas
Sérgio Augusto Vicente
Doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade. Dedica-se a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG). Possui experiência em pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural em museus – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos e oficinas. Entre os anos 2022 e 2023, integrou a equipe curatorial de três grandes exposições que reabriram o Museu Mariano Procópio integralmente aos públicos, com novas abordagens historiográficas e narrativas expográficas. São elas: 1. Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação; 2. Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio; 3. Villa Ferreira Lage (ambientação da residência de uma família da elite senhorial brasileira do século XIX). Desde 2020, atua como escritor da revista Trama Bodoque: arte, cultura e criatividade (ISSN 2764-0639) e, a partir de 2022, também passou a atuar como membro do conselho editorial do referido periódico semanal.
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Meu caro parabéns pelo belíssimo texto, e pelo primoroso trabalho que você e a equipe do Museu fizeram, que muito orgulham todos nós Juizforanos.👏👏👏👏👏👏
Parabéns pelo belíssimo texto e pelo hercúleo trabalho, junto aos demais profissionais, de despertar nosso Museu, que estivera como um gigante adormecido.
Congratulações ao Sérgio Augusto pelo trabalho enquanto historiador do Museu Mariano Procópio (extensivas à toda a equipe da MAPRO) e membro da equipe editorial da revista Trama! Ao lermos atentamente todo o texto, percebemo-nos cidadãos e cidadãs na teia da dentidade coletiva. Possibita-se aos públicos dar novos sentidos aos testemunhos históricos, ao ressignifica-los-os através da visão contemporânea, em que se descortina o papel dos povos indígenas e afro-descendentesdes na construção da história.
Correção ao texto anterior: identidade (e não dentidade).
Agradeço muitos muitíssimo a leitura atenta, carinhosa, bem como as considerações de cada um/uma de vocês. Forte abraço!
Texto incrível Sérgio! Muito legal falar dos bastidores, né? Parabéns a todos do Museu!
Poliana, realmente, é muito bom falar desse processo meticuloso, do qual você fez parte como uma das restauradoras. Obrigado pela leitura atenta!