O Café

Eu costumava ir todos os dia a um café nos arredores de casa, sentava sempre no mesmo lugar e pedia todos os dias, quase religiosamente, um mocha e um pão na chapa. Enquanto esperava meu pedido, abria o notebook e ensaiava algumas linhas. Nos dias menos produtivos, abria o instagram ou o twitter — rolando sem entusiasmo a timeline das vidas perfeitas ou a das problematizações —, enquanto ouvia algum dos meus álbuns prediletos. Eu realmente gostava do ambiente e gostava dessa rotina, que para o bem ou para o mal, mudou há exatos seis meses. 

Era só mais um dia chuvoso, como muitos outros em Curitiba, e eu esperava meu mocha e minhas duas fatias de pão na chapa. Dos meus fones de ouvido escapavam a harpa angelical e a caixa de música de Pagan Poetry, quando ele entrou fugindo da chuva porta adentro. O homem alto e com alguns fios de cabelo branco despontando passou a alguns centímetros de mim e sentou em uma mesa logo atrás da minha. Intuitivamente, tirei os fones e ouvi com atenção quando ele pediu um matcha latte, tinha um tom de voz sereno. Não sei bem o porquê, mas senti vontade de me juntar a ele, perguntar seu nome e descobrir cada detalhe da sua vida. Ri discretamente de mim mesma, da minha imbecilidade. Quando voltei a colocar meus fones, Björk terminava de cantar o último verso da música.  No dia seguinte, com certa ansiedade, me dirigi ao café como de costume. Eu me perguntava se o homem apareceria de novo, se já era um cliente antigo, que por algum motivo passou uma temporada fora, ou se era um morador novo no bairro; ou ainda, se era apenas um cliente que parou nesse café por acaso, por conta da chuva. Para minha total — e inexplicável — decepção, ele não apareceu naquele dia. Como eu precisava entregar a revisão de um texto na tarde seguinte, direcionei aquela pequena frustração para o trabalho, foi uma tarde produtiva. Quando voltei para casa já escurecia. Dois dias se passaram até que eu voltasse a vê-lo. Eu já tinha desencanado da minha singela obsessão quanto ao desconhecido, e agora lá estava ele, havia chegado antes de mim, sentava no lugar que eu costumava me sentar todo santo dia. Um ímpeto de coragem inflou dentro de mim, o que me fez cogitar sentar naturalmente na minha mesa como se ele não estivesse ali, como se ele não existisse. Obviamente, não fiz isso. Eu só fantasiava absurdos, mas no mundo real agia civilizadamente. No fim, acabei sentando de frente para minha ex-mesa. Ele estava concentrado na leitura de algum livro, que naquele momento eu daria tudo para saber qual era. Esses encontros, que nem eram exatamente encontros, aconteceram durante duas semanas: às vezes ele chegava antes de mim e sentava na minha mesa, outras vezes, eu chegava antes e tomava aquilo que parecia ser meu por direito. 

Foi numa quinta-feira que nos falamos pela primeira vez. Naquele dia, ao invés do notebook, levei para o café meu exemplar de Rastejando até Belém, da Joan Didion. Era meu primeiro dia de férias. Na ocasião, eu e meu vizinho de mesa trocamos olhares simpáticos, sorrimos de canto de boca um para o outro. No dia seguinte, nos cumprimentamos. No outro, ele me perguntou o que eu estava lendo. De forma muito natural, eu e meu conhecido de café desenvolvemos uma amizade, no mínimo, curiosa. E a cada semana que passava, mais eu esperava pelos dias em que nos encontrávamos. Agora, não mais rivalizando a mesa ao lado da janela, mas compartilhando-a. Passamos a compartilhar, além de nossos gostos literários, musicais e posicionamento político, nossas experiências de vida, sobretudo, nossas frustrações. 

Nossa relação, em todo aquele período, se restringia ao café e aos arredores do bairro por onde ele me acompanhava até a altura em que nos despedíamos com sorrisos ternos e alguns acenos. Nunca soube onde ele morava, seu sobrenome, telefone, ou quais eram seus perfis nas redes sociais. Nem ele teve qualquer dessas informações sobre mim. Talvez essa fosse a peculiaridade que eu mais gostava desse estranho encontro. O café era nosso lugar secreto, onde podíamos ser o que quiséssemos um para o outro. 

Havia uma inegável tensão sexual em nossos encontros que nenhum de nós queria estragar. No mais, ele era casado e tinha 2 filhas. Eu até gostava quando ele me falava da esposa, achava bonita a forma como falava dela. Por vezes, eu mesma me peguei perguntando coisas aleatórias sobre ela. De minha parte, eu também apreciava compartilhar relatos das minhas experiências românticas — e até sexuais — com ele. Ele era um bom ouvinte. Em uma dessas tardes, nos tocamos pela primeira vez. Um toque de mãos singelo, imbuído de carinho e desejo. Ele tinha mãos macias e quentes, as minhas estavam frias e transpiravam naquele momento. Lembro de rir e falar de Freud, refletindo sobre a minha clara carência afetiva, que eu atribuía ao abandono da figura paterna. Por meses a fio seguimos nessa dinâmica, que para mim era uma espécie de aventura indecifrável. Na última tarde em que nos encontramos ele me deu um pingente de pedra azul e me contou que iria mudar de cidade. Quando me dei conta, lágrimas tímidas escorriam dos meus olhos, e eu me senti como uma adolescente patética por chorar na frente dele, por ele. Quando saímos do café, ele me acompanhou até metade do caminho, como de hábito, mas ao invés de nos despedirmos com sorrisos e acenos, nos abraçamos. Foi um abraço despedida. Eu não tinha nenhuma ilusão de que iríamos nos ver ou nos falar novamente, porque o que quer que fosse que existia entre nós, se restringia aquele lugar, aquele café, estava vinculado a ele e só podia achar-se sob aquela condição. Antes de nos separarmos e cada um seguir seu caminho, ele me perguntou qual perfume eu usava. Eu respondi, dei um sorriso de canto de boca e nos distanciamos a passos lentos. 

Assim começou e acabou nossa breve história no café. Os dias seguintes foram estranhos sem a presença dele, mas eu procurei seguir com a minha rotina de sempre, só que ao invés de pedir o mocha e o pão na chapa, desde então passei a pedir um matcha latte. E em todos os dias de chuva, imagino aquele desconhecido entrando pela porta do nosso café, enquanto Leonard Cohen soa em minha cabeça dizendo: você realmente precisa das mãos dele para sua paixão? 

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Yoná Souza é natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, bacharel em psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2015) e, atualmente, discente do curso de Letras pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Em meio ao caos, escreve. Entre seus interesses estão a literatura produzida por mulheres, estudos feministas, linguagens e artes. 

@souzyona 


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