Psicanálise fora do setting  

Ao lermos o texto “Caminhos da terapia psicanalítica” (1919), de Sigmund Freud, temos a impressão de que o criador da psicanálise estava atento às dinâmicas sociais, políticas e culturais que exigiriam novos olhares e novas abordagens por parte dos psicanalistas. É um trabalho que evidencia uma postura de observação atenta das diversas formas de interação entre o indivíduo e a formação social.  

Ao longo do texto, Freud apresenta técnicas, e aquilo que considera avanços dentro da prática psicanalítica. Ele, portanto, pretende mostrar que o fazer psicanalítico não deve ser engessado, amarrado a dogmas e fechado ao novo. O autor deixa entrever que “o que hoje é, amanhã pode não ser”, se assim for necessário diante de novas descobertas e novas interpretações.  

Todo o trabalho é magistral, porém o que mais chama a atenção é a dissertação que Freud realiza sobre o futuro da psicanálise. Se em sua época o dispositivo analítico era acessível apenas para certos setores da sociedade, a saber, as pessoas com mais recursos econômicos, o autor ansiava que nos anos vindouros pessoas das classes menos favorecidas pudessem também ter acesso aos benefícios da análise. E quando isto acontecesse, seria necessário fazer adaptações, ajustes e mudanças, dado que a interação com o novo público certamente colocaria em cena novos questionamentos e também novos desafios para o corpus psicanalítico.  

Ora, o tempo passou e vemos a cada dia que o anseio de Freud, se ainda não se concretizou, caminha nesta direção. No Brasil já há projetos muito interessantes que buscam aproximar a psicanálise de grupos socialmente vulneráveis. A escuta é praticada na rua, em bairros periféricos, em áreas pobres. Há ainda a inserção de psicanalistas no Sistema Único de Saúde (SUS), os quais mantêm contato com pessoas com poucos recursos, muitas delas mulheres e negras.  

Esta ampliação do alcance da prática psicanalítica também tem a ver com um outro fenômeno. A chegada de pessoas pretas, pardas e indígenas nos centros de produção e divulgação do conhecimento (escolas, faculdades, universidades, centros de pesquisa etc.) que tem ocorrido nos últimos anos proporcionou o encontro com saberes que antes eram acessíveis somente a uma certa elite. Isso tornou possível, por exemplo, que jovens negros e negras conheçam o debate sobre psicanálise e os recortes de raça, gênero e classe a partir da reflexão de pensadoras investidas do saber psicanalítico como Lélia Gonzalez e Grada Kilomba.  

A psicanálise, portanto, precisa agora ser atravessada por saberes e práticas que emanam da realidade de pessoas muito diferentes daquelas para quem Freud falava no início do século XX. No Brasil, particularmente, não dá para pensar a produção do inconsciente sem se atentar para as aberrantes desigualdades de raça, gênero e classe. O racismo deixa marcas profundas na vida psíquica das pessoas negras; o machismo faz do país um dos que mais têm feminicídios em todo o mundo; e a pobreza impede sonhos e projetos de serem realizados, o que causa tristeza e frustração.  

O Freud de “Caminhos da terapia psicanalítica” parece compreender que o dinamismo da sociedade e seus elementos culturais, tecnológicos e políticos colocam os psicanalistas em um lugar de reflexão constante sobre a sua prática. A fixidez, por conseguinte, não parece ser uma característica fundante do campo psicanalítico. 

 


Charles dos Santos é mestre e doutor em sociologia pela UFSCar. Atua como professor e pesquisador, com interesse em temas como programas sociais, políticas públicas, desenvolvimento social e relações étnico-raciais. É autor dos livros “A construção social do meia-sola: trabalho, pobreza e o Programa Bolsa Família na Zona da Mata canavieira de Alagoas” (FAPEAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017) e “A pele alvo: discussões sobre racismo, cultura e protagonismo social negro” (EDIFMA, 2022).   


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