Cresceu ouvindo seu pai cantar para ela e jurava, até ontem, que a música “Marina Morena” tinha sido composta em sua homenagem. Sentia-se a dona do rosto mais lindo da face da Terra. E se recusava em borrocar suas maçãs e boca com o vermelho dos batons e dos blush’s vistos nos rostos de tantas meninas da sua idade. Até ontem.
Nasceu em uma cidade pequena, de pequenos hábitos como ir à sala de cinema nos domingos à tarde, fazer avenida, como dizem os mais velhos ao se referirem a passeios pela praça central da cidade. Gostava de estudar, apesar de não ter as melhores notas da classe. Enquanto os moleques jogavam bola na rua, Marina ficava na varanda de casa com algumas colegas, conversando sobre os amores possíveis e impossíveis que sempre povoam a mente ingênua de uma menina aos quatorze anos. Não se destacava dentre suas amigas, bonitas e vaidosas, nem era tão popular, mas por possuir uma casa de varanda ampla e estratégica, as meninas sempre convocavam Marina para as conversas de fim de tarde. Sim, a varanda era estratégica. De lá dava pra ver o bar do Senhor Américo, um português carrancudo que recebe em seu estabelecimento os rapazes emancipados e que tomam cerveja. Estratégica porquê de lá dava para avistar a Rua do Meio, que deixa flagrar os homens que vão à casa de Dona Telúria, temida pelas mulheres casadas da cidade, sabe-se lá o porquê. Estratégica porquê de lá era possível ver o entra e sai das moças casadoiras na casa de Madame Vanja, uma cartomante que dizem saber o futuro de cada um que a procura e que ensina simpatias e chás pra todas as ocasiões. Todas as ocasiões. E estratégica porque todos os dias, às dezessete horas e trinta minutos, Quim passava por ali rumo à pensão da figura mais extravagante da cidade, Soraia. Uma travesti que aluga quartos em sua casa e que faz shows na boate Pedacinho do Céu, assim chamada ironicamente pelos seus frequentadores. Todas as meninas se derretiam por Quim e Marina não era diferente. Todavia, alimentava uma certeza: seu coração era dele e ele deveria ser dela, só que ele ainda não sabia disso. Quim, Joaquim Mendes Cavalcante. Rapaz alto, de pele morena, olhos acastanhados e covinhas sedutoras que faziam Marina e suas amigas suspirarem profundamente todas as vezes que ele passava diante de seus olhos. Quim trabalhava no único Posto de Saúde que havia em Santa Rita da Fé e vez por outra atendia as meninas que lá chegavam. Dor no ombro, enxaqueca, palpitações, ora, desculpas esfarrapadas, só pra verem o médico jovem, recém-chegado, e sentir bem de pertinho seu hálito de cravo. Mas Marina não se dava a esse trabalho. Sabia que ele seria dela e vice-versa, nunca duvidou disso. Por sua vez, o Doutor Joaquim atendia as meninas e as dispensava, aconselhando que fizessem um pouco de repouso, nada mais. Ele era simples e muito fechado, apesar disso, lidava com essas pequenas situações com bom humor. Quase não falava. Mas suas covinhas, quando sorria ou movimentava os lábios, seduziam, inevitavelmente.
Marina, que sempre se achou a mais linda da cidade, até mesmo mais linda que Gláucia, sua vizinha de cabelos encaracolados e sedosos, resolveu que iria conquistá-lo, para inveja de suas amigas. Pouco se sabia sobre ele. Discreto, além do trabalho só era visto nas missas de domingo e, de vez em quando, na sacada de seu quarto, na pensão de Soraia, onde lia por horas e parecia contemplar um pedaço meio rasgado de um papel que parecia ser uma fotografia. De quem seria? No auge de seus vinte e seteanos, nunca tinha sido visto com nenhuma moça e sabia-se que ele não era de Santa Rita da Fé. Havia chegado para ocupar o cargo de médico há mais ou menos uns três anos, após prestar concurso público. Desde que chegou à cidade era alvo de observações, por ser jovem ainda e ter uma vida tão acanhada pra sua idade. Não fez amizades, não se enamorou, cumpria um ritual que, às vezes, incomodava. Até mesmo pra uma cidade tão pequena. De casa para o trabalho, de casa para a missa. Essa era a rotina de Doutor Joaquim. De qualquer forma as moças andavam suspirando e apostando quem conseguiria chegar ao coração do jovem. Por conta do pedaço de papel que mais parecia uma fotografia surrada pelo tempo, Marina tornou-se obsessiva em conquistar o jovem médico. Resolveu observá-lo com mais cuidado na esperança de que aquele papel fosse nada mais que uma foto de sua mãe ou de sua família e que ele comtemplava para diminuir a saudade. Não era ingenuidade, aliás, de ingênua Marina não tinha nada. Era confiante e obstinada. E, aos quatorze anos, já sentia os hormônios fervilharem. Os rapazes já não lhe causavam ojeriza. A menina do rosto, que nunca vira um blush ou um batom, entregou-se ao exercício de observar Joaquim, a princípio de sua varanda ampla e estratégica, mas aos poucos, essa observação foi se tornando um ofício que a levaria a desvendar o mistério da hipotética fotografia. Feito Sherlock Homes, colocou toda a sua criatividade para funcionar e passou a frequentar o Posto de Saúde com dores nas juntas. Nas primeiras visitas ao médico, nenhuma novidade. Puxava conversa e ele desconversava. Porém, suas idas ao consultório foram se tornando uma rotina, o que chamou a atenção de seus pais que logo quiseram levá-la para a Capital para exames mais minuciosos. Claro, ela se recusou. Depois de umas quatro visitas tomou coragem:
__Doutor Joaquim, observo o senhor de minha varanda e vejo que gosta de ler, não é mesmo?
__Sim, dona Marina.
__Ah, por favor, sou ainda uma menina, tire o dona, me chame apenas de Marina. Qual o autor que tanto lhe prende a atenção?
__Gosto de Júlio Verne e suas aventuras.
__Hum, entendo. Você não é daqui. Já deve ter viajado muito, conhecido muitos lugares, apesar de jovem. Você parece ser um aventureiro, acertei?
__Nem tanto, dona, quer dizer, Marina. Sou jovem, mas não provei ainda das aventuras da vida. Minha maior aventura foi me mudar pra esta cidadezinha.
__E ao se mudar pra cá, tenho certeza de que deixou pra trás um grande amor…
__Perdoe-me, não entendi.
__É que tenho visto, também, um papel… uma fotografia, talvez… que parece dividir sua atenção entre as aventuras de Monsieur Júlio Verne e a contemplação da figura ali representada. Mas não quero ser indiscreta.
O silêncio entregou-o. Na certa era sim a fotografia de uma mulher. Por uns instantes a menina doce conseguiu desconcertar o médico, faces rubras e um sorriso amarelado, daqueles que indicam um flagrante qualquer. Não será fácil conquistá-lo. Fala pouco, não convive com os rapazes de sua idade. Divide seu tempo entre o Posto de Saúde, a casa de pensão e a missa aos domingos. Marina, que não era muito dada a rezas e terços, passou a frequentar assiduamente as missas e a sentar-se ao lado de Joaquim. Puxava conversa sobre qualquer assunto, pra ver se conseguia descobrir algo. Um belo domingo de primavera convidou-o para um suco em sua casa, onde também estariam suas amigas e amigos de escola. Pensou que seria uma boa oportunidade para mostrar a todos que era amiga dele e que em breve poderiam ter algo a mais. Já era bochicho na cidade a amizade entre os dois. Alguns apostavam que havia mais do que isso, outros não acreditavam em tal possibilidade. Joaquim não aceitou o convite, justificou-se de qualquer maneira, usando subterfúgios não convincentes. Aquele domingo de primavera foi o mais longo e o mais chato para Marina que não se interessou por nada do que seus amigos fofocavam. Mas não desistiu de Joaquim, aos poucos foi entendendo que ele preferia mulheres mais velhas, mais experientes. Deduções feitas a partir dos poucos diálogos que tiveram. Decidiu: “tenho quatorze anos, nunca me pintei. É hora de mostrar que já sou uma mulher”. E a doce Marina imprimiu em seu olhar um quê de sedução, um ar oblíquo e olhou-se fixamente no espelho do quarto. Examinou suas curvas, seus longos cabelos e sua pele morena.
Todos os anos, em meados de setembro, a cidade virava uma festa. A Festa da Primavera em que as belas rosas, cultivadas nos roseirais de cada casinha, eram a grande atração. Vinham pessoas dos arredores e até da capital para o momento em que se comemorava a estação mais florida do ano. Todas as moças enfeitavam-se de rosas, menos Marina, que conservava ainda a infância travestida em seu vestidinho de renda. Porém, tão florida quanto a estação mais florida do ano, lá estava Marina, com um vestido azul, impecável e que deixava entrever sua silhueta de menina transformada em mulher. Com lábios avermelhados pelo batom e sua face rosada como as rosas da estação, parecia ter desabrochado. Ninguém a reconheceu, a princípio. E ela, tal qual Perséfone, encantou a todos, menos a seu alvo: Doutor Joaquim. Este, boquiaberto, lançou lhe um olhar tão frio que a primavera com seus aromas e suas flores parecia ter se transformado em um inverno rigoroso e eterno. Marina sentiu-se desprezada, sem saber o motivo de tamanha desfeita. Correu por entre as pessoas como um bicho que foge de seu predador. Trancou-se no quarto a chorar copiosamente. Adormeceu entre soluços e revolta. Ao acordar, caminhou em direção à varanda que, estrategicamente, permitiu reconhecer a sombra de Quim com aquele maldito papel em mãos. Das bochechas rosadas e da boca vermelha restaram apenas algumas pinceladas que desenhavam na face os sulcos que as lágrimas haviam cavado em seu rosto agora amarrotado como um lençol de núpcias. E ao olhar-se refletida no vidro da porta que dava para a sala, percebeu as marcas dos sonhos desfeitos. Não era mais a menina doce de outrora. Sentia-se a moça mais linda da cidade, até ontem.
Joseani Adalemar Netto é natural de Santos Dumont, Minas Gerais. Formada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Educação Infantil, Especialista em Educação Contemporânea pelo IF-Sudeste, campus Santos Dumont e Mestre em Letras – ProfLetras UFJF. Leciona Língua Portuguesa e suas Literaturas na Rede Municipal e Particular de Santos Dumont. É membro efetivo da Sociedade Brasileira dos Poetas Adravianistas (SBPA), Coordenadora do Projeto de Leitura LeiturAMA-SD, membro atuante da Ação em Movimentos Artísticos de Santos Dumont (AMA-SD), fundadora e coordenadora da Academia Brasileira de Autores Aldravianistas Infantojuvenil – SD (ABRAAI-SD), membro correspondente da Academia Portuguesa de Ex-Libris (APEL). É contadora de histórias, palestra sobre Educação e Literatura, ministra oficinas e atividades culturais voltadas para o incentivo à leitura e à escrita tanto para estudantes quanto para a formação de professores na cidade de Santos Dumont e região. Tem seus textos publicados em antologias literárias como o Livro IV, V, VI, VII e VIII e IX das Aldravias; Antologia Juiz de Fora ao Luar; Antologia Múltiplas Palavras, UBT (JF), e-book Cronistas da Quarentena (2021), Livro foto-poema pela Lei Aldir Blanc. Possui capítulos em livros pedagógicos voltados para o Letramento Línguistico e Literário, artigos publicados em jornais e revistas voltados para a Educação. Já prefaciou livros e quarta capa para vários outros escritores e poetas. Trabalha como revisora linguística em várias publicações. É colaboradora externa no Projeto Propostas Pedagógicas para o Ensino de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental II e Ensino Médio, atuando como co-orientadora dos bolsistas de Letras na construção de sequências didáticas, do IF-Sudeste, campus Juiz de Fora e atua também no projeto de pesquisa Performances do Narrador, UFMG, com o olhar para as obras de Conceição Evaristo. Participa de forma atuante em oficinas, palestras, cursos, saraus e atividades afins. Possui certificados e medalhas de Mérito Cultural por sua atuação como fomentadora da cultura local e da região, oferecidas pela SBPA, Lesma Poesia, Rotaract, Interact, Câmara Municipal de Santos Dumont, dentre outros.
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Pobre Marina, sentir as dores do amor não correspondido tão jovem!!! Graças as suas dores minha doce amiga aurora nos brinda com mais um belo texto???
A nós que a vimos crescer e o desabrochar do talento da Menina D’Ale(m)Mar fica a certeza.. céus e mares..colinas de cheiro agreste ..sempre geraram corações simples e poetas …