A heroína trágica e o arquétipo da mulher terrível: religião, loucura e insubmissão no mito da Medeia

INTRODUÇÃO 

Não há como dissociar o legado cultural da Grécia Antiga da produção tragiográfica de seu tempo. Nesse sentido, o teatro exerceu funções primordiais no florescimento e manutenção da cultura grega alimentando-a e ratificando determinados pressupostos que compunham o éthos de seu tempo. Nesse campo, nomes como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes mereceram destaque não apenas entre os representantes da cultura de um tempo, mas também como expoentes da produção poética (a tragediografia era escrita em versos) de todo o Ocidente.  

Assim, não podemos promover uma análise de conteúdo mitológico e literário sem levar em consideração os pressupostos culturais vigentes ao tempo da reprodução de determinadas histórias. Como afirma PALMA (2007): 

“[…] o discurso literário pode não ser apenas ligado aos procedimentos adotados pelo autor, mas também, e talvez mais diretamente do que se pensa, ligado ao contexto sócio-cultural no qual está inserido, evidenciando-se, nem sempre claramente, uma influência das instituições que o cercam na escolha de determinados procedimentos de linguagem.” 

Desse modo, propomos, no presente trabalho, uma análise do mito de Medeia enquanto um discurso cultural de um povo e um tempo.  

A ÉPOCA TRÁGICA DOS GREGOS E A FUNÇÃO PEDAGÓGICA DA TRAGÉDIA 

De acordo com Dutra (2005), Medeia representa a noção da mulher bárbara ultrajda que, no ímpeto de vingar-se de Jasão, seu marido, mata seus próprios filhos. Isso representa uma violação das leis humanas e divinas.  

“Para melhor entender o mito de Medéia, necessário se faz, no entanto, remontar a outra lenda da mitologia pagã: a conquista do velocino de ouro e a saga dos Argonautas. Junito Brandão (1987, p. 175-91) registra a seguinte versão: em Iolco, na Tessália, reinava Esão, que foi destronado pelo irmão Pélias. Jasão, filho de Esão, reivindicou mais tarde o trono a que tinha direito por herança. Pélias, no entanto, para livrar-se do sobrinho, impôs como condição que este conquistasse o velo de ouro consagrado ao Deus Ares em um bosque da Cólquida, na Ásia Menor. Em busca do velocino, Jasão chefiou uma grande expedição no navio Argos (daí a designação de “Argonautas” para seus tripulantes). […] diante da impossibilidade de vencer sozinho as provas, Jasão foi socorrido pelos poderes do Amor. Apaixonada pelo herói, Medéia, filha de Eetes, relatou ao tessálio que o rei tencionava matá-lo e ajudou-o, com seus dons de magia, a cumprir as tarefas. De posse do velocino, Jasão e Medéia fugiram da Cólquida, levando como refém Apsirto, filho mais jovem de Eetes. Iniciou-se aí uma trajetória de amor, ódio, vingança e morte. Após abandonar o pai e a pátria, Medéia cometeu sucessivos crimes. Sua primeira vítima foi Apsirto que, trucidado pela irmã, teve seus membros esquartejados e lançados ao mar para atrasar a perseguição de Eetes. De volta a Iolco, Jasão descobriu que, durante a sua ausência, o usurpador Pélias havia assassinado Esão. O argonauta vingou-se, então, por meio dos feitiços de Medéia, que convenceu as filhas de Pélias a esquartejar e cozinhar os membros do pai para rejuvenescê-lo. Acasto, filho de Pélias, assumiu o lugar do rei e perseguiu Jasão e Medéia, que se refugiaram em Corinto, na corte do rei Creonte. Viveram em paz em Corinto, até que o rei resolveu casar sua filha Creúsa (ou Glauce) com o herói da Tessália. Repudiada por Jasão e expulsa da cidade, Medéia resolveu vingar-se tragicamente. Com suas poções mágicas e fatais, matou Creonte e Creúsa e incendiou o palácio real. Sua vingança, todavia, não ficou por aí. Para que o marido sofresse dor inigualável, trucidou os filhos que tivera com ele, Feres e Mérmero, fugindo depois para Atenas, em um carro puxado por duas serpentes aladas, presente de seu avô Hélios, o Sol.” 

A partir de tal construção mítica, Eurípedes, qual outros tragediógrafos de seu tempo, produziu sua versão teatral da história com vistas a transmitir (e reiterar) as “verdades” formativas da comunidade.  

Outrossim, deve-se assinalar que o teatro possuía um papel formador da cidadania na Pólis, assumindo, por isso, a função pedagógica de educar os cidadãos àquele modus vivendi. SANTOS (2013, p. 31) salienta que:  

“[…] no itinerário ascendente da cultura grega e sua peculiar compreensão da necessidade de formação deste homem coube, portanto, ao gênero trágico esta função educativa proeminente e justificada por Aristóteles, devido seu caráter imitativo das ações. Portanto, ao acompanhar o enredo da tragédia, o espectador se envolve e se reconhece através do evento mimético, possibilitando assim a passagem da ignorância para o conhecimento, confrontando seus limites, ambiguidades e contradições. Enfim, a tragédia continha a força expressiva de representar no palco sua matriz existencial, exercendo papel imprescindível e basilar na compreensão do sentido existencial do povo grego. Tal aspecto tornou-se mais e mais evidente devido ao forte espírito religioso e moral desse povo.” 

Portanto, opormos o mito e a tragédia possibilitam múltiplas abordagens e leituras. Evidentemente, isso implica uma tomada discursiva de posição, uma vez que recortamos uma escritura do mito e uma escritura da tragédia- fato que influi na construção do sentido aproveitado-. No entanto, semelhante eleição está de acordo com a proposta do presente estudo.  

O ÉTHOS DA FEMINILIDADE NO MUNDO GREGO 

Antes de propriamente pensarmos no contexto de produção e escrita de determinados mitos, é necessário que destaquemos qual o ponto de partida para semelhante análise. Sem embargo, o conceito chave para desanuviarmos tal perspectiva é o conceito de éthos. Para tanto, nos valemos do trabalho de REIS (2009), segundo o qual esse vem a ser:  

‘Termo de origem grega utilizado em retórica, que significava o costume, o hábito, o carácter que o escritor ou orador adoptava para dar uma imagem dele mesm que inspirasse confiança no público; designa igualmente uma descrição explícita alusiva dos costumes da época. 

Em Teogonia (66), Hesíodo refere que éthos está ligado a nómos costume, convenção, instituição, lei). Nómos aparece muitas vezes associado a éthos, mas representando o mesmo sentido nas Leis (VII 792 d-e) de Platão. Podendo do mesmo modo, significar carácter ou maneira de ser como o referido Autor refere em A República (VI 490 c). Na Poética, Aristóteles fazia corresponder o seu significado ao que hoje designamos por psicologia das personalidades. Éthos é, assim, assimilado a uma ordem normativa interiorizada, a um conjunto de máximas éticas que regulam a conduta da vida. Ao longo da sua extensíssima obra Aristóteles várias vezes se refere a este conceito tendo na Ética de Nicómaco (II 1, 1103 a) feito a distinção entre dois tipos de virtudes: as virtudes do pensamento (dianõetikaí) que se adquirem pelo ensino, e as virtudes do carácter (ethikaí) que se adquirem pelo hábito e por conseguinte requerem paciência e tempo. Na Retórica (II 12-14) faz o levantamento de diferentes tipos de êthes em função particularmente da idade.’ 

Em relação a esse ponto, não é exagero dizermos que o mundo grego na Antiguidade foi marcado por um veemente horror e desprezo a tudo aquilo que referenciava o feminino. ADAID (2017, p.68) evidencia que:  

“As  mulheres  geralmente  eram  analfabetas e a única educação que recebiam dos pais era voltada  para  seu  futuro  como  esposa,  ou  seja,  a  mulher era meramente uma procriadora. Existiam as  hetairas  que  eram  mulheres  mais  interessantes  e com mais conhecimentos que as demais. Muitos homens  gostavam  de  suas  companhias,  pois  não  atuavam como prostitutas apenas. Quando o marido achava que já tinha herdeiros suficientes, ele simplesmente parava com a relação sexual marital. Havia tanta falta de afinidade entre os cônjuges que  eles  dormiam  em  quartos  separados  –  o  que  talvez não ocorresse entre as famílias menos abastadas. Dada a total falta de intimidade entre o casal, prosperou nessa época o uso de masturbado-res para as mulheres. Visto que, após o casamento, as  mulheres  só  se  relacionavam  socialmente  com  outras mulheres, é provável que a relação homossexual  feminina  tenha  sido  uma  prática  comum,  visto que dificilmente seria descoberta e não havia qualquer risco de engravidar.  Existem  infindáveis  relatos  mitológicos, poesias e discursos sobre a prática da homossexualidade  entre  os  homens.  Contudo,  quase  não  se  sabe sobre a história das mulheres. O falocentrismo e  a  misoginia  na  Antiguidade  parecem  tão  fortes  que filósofos, poetas e pensadores nem se deram ao trabalho de deixar um relato para a posteridade. Talvez em uma tentativa de anular o passado feminino.” 

Tendo em vista esses aspectos, volvemos o olhar para Medeia. No texto de Eurípedes, a personagem, agora vivificada em palavras proferidas por um ator, encarna como uma mulher cruel, vingativa e desapaixonada. Suas falas são marcadas por expressões de ódio e raiva. Como se pode ver em EURÍPEDES (2022): 

“Medeia 

Ai! Ai! 

Sofri, desgraçada, sofri males muito para lamentar. 

Ó filhos malditos de mãe odiosa, 

perecei com vosso pai, e a casa 

caia toda em ruínas.” 

Ao mesmo tempo, se percebem elementos de dor, tristeza e desesperança nas falas da protagonista, como se nota a seguir em um trecho da mesma obra:  

“Medeia  

Ai! Ai! 

 O fogo do céu me trespasse a cabeça. 

 De que vale ainda viver? Ai, ai!  

Quem me dera deixar a vida odiosa,  

pela morte libertada!” 

Ao término da leitura, enfim, Eurípedes escreve na última página o seguinte:  

Coro 

 De muita coisa é Zeus no Olimpo o Senhor, e muita coisa os deuses fazem sem contar. Vimos o que se esperava não realizar, para o que não se sabia o deus achar caminho. Assim vistes o drama terminar. 

Com silencioso acatamento do caos e da tragédia, a obra termina com a morte dos filhos de Jasão e Medeia e fala acima do coro. O texto deixa em quem o lê um sentimento de profundo dissabor perante a despersonalização dos sujeitos perante os sofrimentos inelutáveis dom destino.  

A protagonista, por sua vez, que, no mito, pode ser lida como triste, louca ou puramente má, aqui assume um caráter passional e vingativo de aspecto raso em relação às múltiplas leituras possíveis da história popular.  

AS REMINISCÊNCIAS DA MULHER TERRÍVEL  

O mote trágico da mulher terrível perpassa diversas eras e se mantém ubíquo no mundo contemporâneo. Entrementes, a força de tal imaginário –já hoje apresentando sinais de desgaste- encontrou no bojo da misoginia estrutural grega um terreno fértil para desenvolver-se e reiterar-se à maneira de um leitmotiv histórico-social sempre disposto a arbitrar sobre a conduta feminina.  

Nos atendo propriamente ao texto do tragiógrafo grego em diálogo com o éthos de seu tempo, é possível notarmos determinados pontos dignos de nota. O mais importante deles é a caracterização da própria narrativa acerca da personagem. Medeia, uma estrangeira e mulher, é vista sob o prisma de uma figura terrível por atentar contra uma instituição sagrada: a maternidade. O que a leva a isso é o ódio contra um homem. Com efeito, a ideia de insubmissão feminina é um ponto que tem causado frisson ao longo de muitas épocas e foi, inclusive, tema de outras obras gregas da Antiguidade, como: Antígona (Sófocles) e A Greve do Sexo (Aristófanes).  

Sem embargo, o mesmo espanto vindo de uma sociedade marcada pela misoginia a uma mulher que não, se submete às convenções que a oprimem é aquele que empreende uma narrativas que visa, em muitos níveis, cercear o ser feminino. O ataque à Medeia e sua demonização como mulher terrível não parece vir do fato dela matar seus filhos. Ao contrário, essa narrativa de terrificação do olhar para com um ser sem amor pela própria cria mais parece ser um recurso cultural para a manutenção do controle sobre os corpos femininos, cuja sagrada e inegável função é reafirmada como a da procriação. Ou seja: Medeia não é insubmissa por ser horrenda, mas, por ser insubmissa, é vista como horrenda. E, nesse ínterim, a narrativa da mãe bárbara e assassina é instrumentalizada para manter uma estrutura de opressão.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

No presente ensaio objetivamos analisar, em diálogo, o mito de Medeia e sua tragédia com a estrutura sócio cultural de sua época. Observamos que o éthos grego da Antiguidade foi permeado pela misoginia e baseado no férreo arbítrio para com a disposição dos corpos femininos.  

Foi percebido que a função social da tragédia na formação do cidadão influiu para a construção de uma narrativa enviesada sobre a figura da protagonista. Medeia, destarte, é observada e (re)encenada como uma figura marcada pelo tríptico tristeza-loucura-maldade.  

Finalmente, propomos que uma leitura acerca da história em questão não se pode ater apenas à construção material do texto dos tragiógrafos. Pelo contrário, é fundamental a leitura em acordo com a observação do momento histórico no qual foram escritos tais trabalhos, uma vez que o período em questão agrega junto de si toda uma esfera de interpretação de mundo. Essa questão, destarte, influi na concepção do texto como um discurso de um sujeito inserto em um tempo e um espaço circundados por uma cultura.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ADAID, Felipe. HOMOFOBIA E MISOGINIA NA ANTIGUIDADE: GENEALOGIA DA VIOLÊNCIA. Revista brasileira de Sexualidade Humana – 2017 28(10, 57-68. Disponível em: https://www.rbsh.org.br/revista_sbrash/article/view/10/7. Acesso em 25 de agosto de 2022.  

DUTRA, Eneo Moraes. O MITO DE MEDÉIA EM EURÍPEDES.  Universidade Federal de Santa Maria. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/download/11403/6878. Acesso em 25 de Agosto de 2022. 

EURÍPEDES. Medeia. Disponível em: https://letras-lyrics.com.br/PDF-Download-Book-Livro-Baixar-Online/Euripides/Medeia. Acesso em: 25 de Agosto de 2022.  

PALMA, Moacir Dalla. DISCURSO LITERÁRIO: LINGUAGEM INTRINSECAMENTE DIFERENCIADA OU TEXTO INSTITUCIONALMENTE DETERMINADO? Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 9 (2007) – 1-124. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa. Acesso em: 25 de Agosto de 2022. 

REIS, Tereza. ÉTHOS. 2009. Disponível em : https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/ethos. Acesso em 18 de Julho de 2022.  

SANTOS, Vagner Souza. A DIMENSÃO FORMATIVA DA TRAGÉDIA GREGA: SÓFOCLES. FILOSOFANDO: REVISTA DE FILOSOFIA DA UESB– ANO 1 · NÚMERO 1 · JANEIRO-JUNHO DE 2013 · ISSN: 2317-3785. Disponível em: file:///C:/Users/PROFESSORES/Desktop/ARIEL/2124-Texto%20do%20artigo-3571-1-10-20171207.pdf. Acesso em 25 de Agosto de 2022.  

 


Ariel Von Ocker reside em Cuiabá, MT. Pessoa trans non-binary, é escritora e professora. Autora com dez livros publicados, atua desenvolvendo pesquisas na área da linguística, filosofia da linguagem e filologia românica.  

Atualmente, trabalha como editora-chefe no projeto Revista Ikebana . Além de trabalhar como professora de Português Língua Estrangeira na Universidade Federal de Mato Grosso.  

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